Uma visão da nova Lei nº 15.160/2025: entre inconstitucionalidades, simbolismo penal e direito penal de exceção

Texto de Opinião (Dra. Ruth Lima e Dra. Rafaela Alban)

Agora há pouco, em 07 de julho de 2025, entrou em vigor a Lei nº 15.160, que modificou o Código Penal Brasileiro para vedar a utilização da atenuante do artigo 65, inciso I, e da causa de redução dos prazos prescricionais do art. 115, especificamente nos crimes que envolvam violência sexual contra a mulher.

Pois bem, o que se tinha antes da alteração legislativa, era a aplicação, em função da idade e independentemente da natureza do delito, de uma atenuante na segunda fase da dosimetria da pena (artigo 65, I, CP), bem como a redução à metade dos prazos da prescrição da pretensão punitiva e executória (artigo 115, CP), nas hipóteses nas quais o autor era menor de 21 anos, na data dos fatos, ou maior de 70 anos, na data da sentença.

Os referidos dispositivos eram aplicáveis a todo e qualquer crime. Mas, com a modificação implementada pela Lei nº 15.160/2025, passaram a ter a seguinte redação:

Art. 65. São circunstâncias que sempre atenuam a pena:

(...)

I - ser o agente menor de 21 (vinte e um) anos, na data do fato, ou maior de 70 (setenta) anos, na data da sentença, salvo se o crime envolver violência sexual contra a mulher;

Art. 115. São reduzidos de metade os prazos de prescrição quando o criminoso era, ao tempo do crime, menor de 21 (vinte e um) anos ou, na data da sentença, maior de 70 (setenta) anos, salvo se o crime envolver violência sexual contra a mulher.

No entanto, apesar da aparente intenção do legislador ordinário e de ser absolutamente legítimo fortalecer os mecanismos de combate aos crimes de violência contra as mulheres, toda proposta legislativa que se destina a reprimir a violência de gênero deve ser submetida a uma análise aprofundada e juridicamente responsável, evitando-se que se resuma a medidas meramente simbólicas, inclusive, incapazes de enfrentar as causas estruturais da violência de gênero.

Diante disso, é importante realizar uma breve análise crítica da Lei n. 15.160/2025, considerando dados empíricos, os princípios constitucionais e a função representativa da norma penal, especialmente no contexto do direito penal simbólico e do direito penal do inimigo.

O ponto de partida não poderia ser diferente: seja em casa, na rua ou no ambiente de trabalho, o mundo ainda não é um lugar seguro para as mulheres, cujos corpos são, historicamente, atravessados pelas violências de gênero, a partir de um movimento que se reedita em distintos contextos políticos e de mecanismos institucionais, sustentado pela perpetuação de profundas desigualdades, alimentadas por estereótipos de gênero e por um patriarcalismo culturalmente enraizado.

A propósito, essa forma de violência, que é agravada pelo recorte de raça, se manifesta de diversas maneiras (física, sexual, moral, psicológica e patrimonial), constituindo, no limite de tudo, uma expressão clara de poder e controle sobre mulheres, espíritos insubmissos objetificados e oprimidos em sociedades patriarcais.

Por aqui, a questão, com suas raízes igualmente estruturais e sistêmicas, continua sendo um problema grave que demanda especial atenção, como mostram os dados do mais recente 18º Anuário de Segurança Pública. Afinal, o relatório relativo ao ano de 2023 revela que o Brasil registrou um crime de estupro a cada seis minutos e um total de 83.988 casos, cuja maioria das vítimas são mulheres (88,2%), negras (52,2%) e vulneráveis (76%) [1].

No rol, ainda atinente à violência sexual, para o mesmo ano, foram também registrados casos de outros crimes contra a dignidade sexual, como importunação sexual (41.371), assédio sexual (8.135) e divulgação de cena de estupro, sexo ou pornografia (7.188).

Ademais, para além dos delitos dessa natureza, seguindo a tendência dos anos anteriores, o documento aponta para o crescimento geral de outros crimes contra a mulher, a saber: ameaça (778.921); agressão física decorrente de violência doméstica (258.941); perseguição ou stalking (77.083); violência psicológica (38.507); tentativa de homicídio (8.372) e de feminicídio (2.797); e feminicídio (1.467).

Dito isso, impõe-se aqui a necessidade de “separar o joio do trigo”, pois, embora seja legítimo e necessário reconhecer que a violência de gênero – marcada por fatores históricos, culturais e sociais – afeta majoritariamente pessoas do sexo feminino, tal constatação não pode ser instrumentalizada como justificativa para propostas legislativas teratológicas, que configuram meras expressões de um direito penal simbólico, destituídas de efetividade no enfrentamento estrutural das violências de gênero e que, na prática, revelam incompatibilidades insuperáveis com princípios constitucionais fundamentais.

Com a devida vênia, é exatamente esse o cenário que se desenha com a promulgação da Lei nº 15.160/2025!

Em primeiro lugar, porque, ainda que se admita, apenas para fins de argumentação, a premissa adotada pelo legislador ordinário – qual seja, a de que o combate à violência sexual contra a mulher justifica um tratamento penal mais severo (premissa que, aliás, não se acredita) –, não parece adequada a escolha de um critério isolado e estático baseado exclusivamente no gênero. Afinal, tal abordagem ignora a realidade brasileira, na qual o fator etário assume papel central em delitos dessa natureza, uma vez que, como já mencionado acima, crianças e adolescentes representam, estatisticamente, as principais vítimas de estupro no país. Ora, com isso, paradoxalmente, o grupo mais vulnerável acabou sendo excluído da suposta ampliação da proteção legislativa.

Ao retomar os dados do mais recente 18º Anuário de Segurança Pública, verifica-se que crianças e adolescentes de até 13 anos concentram a maior parte das vítimas do crime de estupro, representando 61,6% dos casos (frise-se: número que pode ser ainda maior devido à subnotificação desses crimes). A maioria dessas vítimas são meninas entre 10 e 13 anos de idade – ou seja, não mulheres adultas, como parece pressupor a legislação. Em grande parte desses episódios, o agressor é um homem familiar próximo, e o crime aconteceu dentro da própria residência.

Além disso, outra distorção insuperável decorrente dos efeitos colaterais da lei – que afronta tanto o princípio da isonomia quanto o dever de proteção prioritária de crianças e adolescentes – pode ser ilustrada pela seguinte situação: um homem, enquadrado no critério etário previsto em lei, comete o crime de estupro contra uma criança do sexo masculino – cuja vulnerabilidade é, em muitos casos, ainda maior do que uma mulher adulta – e faz jus à atenuante da idade ou à redução pela metade do prazo prescricional. Por outro lado, se a vítima for uma mulher adulta, esses benefícios legais serão afastados. Tal disparidade evidencia um tratamento jurídico aparentemente incoerente, que privilegia o critério de gênero em detrimento da real vulnerabilidade da vítima.

A propósito, essa hierarquia artificial imposta pela legislação aprofunda desigualdades já existentes, uma vez que, conforme ainda destaca o 18º Anuário de Segurança Pública, há uma evidente ausência de proteção legal nos casos de estupro contra meninos – especialmente diante da subnotificação e vitimização concentrada entre 4 e 6 anos –, bem como nos casos que envolvem vítimas LGBTQIA+.

Em segundo lugar, destaca-se outro impasse gerado pela lei: embora tenha como objetivo proteger as mulheres contra a violência de gênero, sua aplicação se limita à violência sexual, negligenciando outras formas igualmente graves, que afetam outros direitos fundamentais, como a violência física, psicológica, patrimonial e moral, igualmente tuteladas pela Lei Maria da Penha.

De fato, nesse ponto, a lei apresenta uma contradição lógica, ao deixar desamparada uma parcela significativa das vítimas, violando os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da proporcionalidade. Basta consultar, pela quarta vez, o 18º Anuário, que, conforme destacado anteriormente, evidencia uma vitimização muito mais ampla, abrangendo crimes que não envolvem violência sexual, tais como ameaças, lesões corporais dolosas em contexto de violência doméstica, perseguição ou stalking, violência psicológica, feminicídios tentados e consumados.

Em terceiro lugar, deslocando o eixo de análise para a própria modificação legislativa aplicada no caso concreto, é possível identificar um último equívoco cometido pelo legislador originário: os benefícios legais previstos nos artigos 65, I e 115 do Código Penal têm como base uma política criminal orientada pela ideia de que pessoas muito jovens ou idosas tendem a ter maturidade reduzida ou condições físicas e psicológicas mais frágeis, o que pode influenciar diretamente na culpabilidade do agente.

Trata-se, portanto, de um critério que independe da natureza do delito e que, especialmente no caso da exclusão da atenuante da idade, vem a configurar uma grave violação ao princípio da individualização da pena (art. 5, XLVI, CF). Negar a aplicação dessa atenuante com base apenas na tipificação do crime implica desconsiderar as características pessoais do réu, como sua maturidade, estado emocional e condições de saúde. Dessa forma, a resposta penal deixa de ser justa e proporcional, transformando-se em uma punição automática e inflexível, incapaz de se adequar à realidade concreta do acusado.

E pior: no que se refere ao instituto da prescrição, é sabido que se trata de um direito exercido pelo réu em face não da vítima ou do Ministério Público, mas do próprio Estado. Portanto, até mesmo por ser um instituto irrenunciável, não há justificativa plausível para que a natureza do delito seja utilizada como critério para lhe impor limites ou restrições.

Ao par dessas questões levantadas, observa-se que a nova legislação, apesar de fundada em um propósito legítimo, incorre em vícios materialmente inconstitucionais e graves incoerências sistêmicas.

Afinal, ao analisarmos com mais atenção, percebemos claramente que o problema não reside apenas nas discriminações explícitas geradas pela lei ou nas incoerências internas que ela apresenta, mas sobretudo em seus pressupostos ideológicos, que se baseiam no direito penal simbólico e evitam enfrentar de forma estrutural a violência de gênero – uma questão cuja solução certamente não pode ser tão superficial.

Explica-se: o simples endurecimento da lei penal costuma representar, tão apenas, um ato político simbólico, destinado mais a gerar uma falsa sensação de segurança e combate à criminalidade do que a produzir efeitos reais e eficazes. Contudo, essa resposta limitada não alcança as raízes do problema, que são profundamente estruturais. Enfrentar a violência de gênero exige, na verdade, muito mais do que leis penais severas: requer uma transformação social, cultural, institucional e educacional. É preciso atacar as causas profundas dessa violência, que estão diretamente relacionadas à desigualdade de gênero, ao machismo, à cultura patriarcal e à naturalização da violência contra mulheres e meninas.

Aliás, há ainda uma legítima preocupação quanto à nova legislação, que vai além do gesto meramente simbólico, uma vez que contém elementos característicos de um Direito Penal de Exceção (ou, como define Jakobs, Direito Penal do Inimigo), ou seja, um sistema que afasta direitos e garantias para lidar com determinados “inimigos” sociais.

Explica-se: a exclusão de benefícios legais para crimes determinados – como no caso da eliminação de uma atenuante tradicional ou da causa de redução do prazo prescricional, especificamente para crimes sexuais – levanta sérias inquietações no contexto do Estado Democrático de Direito, pois pode estabelecer precedentes perigosos, abrindo margem para exceções casuísticas e autorizando, no futuro, que o Estado determine arbitrariamente quais réus devem receber tratamento mais rigoroso.

Afinal, isso gera um efeito cascata: se vale para o delito de estupro, por que não para o tráfico de drogas? por que não para o furto? E assim por diante.

Portanto, nessa perspectiva, a Lei nº 15.160/2025 configura, em sua essência, uma concretização do chamado Direito Penal do Inimigo, que rompe com as garantias fundamentais ao instituir um regime de exceção dirigido seletivamente a determinados indivíduos, em afronta aos princípios da legalidade e da igualdade, que são pilares estruturantes do Direito Penal.

E essa não é uma afirmação leviana: a maior evidência disso está no fato de que a atenuante da idade para menores de 21 anos tem origem histórica no Código Civil de 1916, época em que a maioridade civil era fixada aos 21 anos. Nessa lógica, indivíduos com mais de 18 anos – idade da maioridade penal –, mas menores de 21 – idade da maioridade civil –, eram considerados portadores de capacidade de entendimento e autodeterminação reduzida, ou seja, apresentavam uma imaturidade relativa que justificava a redução da culpabilidade. Contudo, com a promulgação da Constituição Federal e, posteriormente, do Código Civil de 2002, que reduziu a maioridade civil para 18 anos, esse fundamento se tornou anacrônico. Assim, em tese, tal atenuante deveria ser aplicada de forma uniforme para todos os delitos, considerando o princípio da igualdade e a própria lógica da imaturidade relativa. Se a intenção fosse afastar essa atenuante, tal afastamento deveria ocorrer de maneira geral, para todos os crimes, e não de forma seletiva, com base na natureza específica do delito.

Por derradeiro, para além das questões aqui debatidas, é importante dizer que, tratando-se de novatio legis in pejus, a Lei nº 15.160/2025 NÃO retroage para alcançar fatos ocorridos anteriores a sua vigência, para os quais opera a ultratividade da lei benéfica anterior e, portanto, segue plenamente aplicável a atenuante da idade, bem como a redução dos prazos de prescrição.

 

NOTAS

[1] O estupro de vulnerável é tipificado na legislação brasileira como a prática de conjunção carnal ou ato libidinoso com vítimas menores de 14 anos ou incapazes de consentir por qualquer motivo, como deficiência ou enfermidade.

 

REFERÊNCIAS

[1] BRASIL, Lei nº 15.160 de 3 de julho de 2025. Modifica os arts. 65 e 115 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para alterar circunstância atenuante e vedar a redução do prazo de prescrição para os crimes que envolvam violência sexual contra a mulher, quando o agente for, na data do fato, menor de 21 (vinte e um) anos ou, na data da sentença, maior de 70 (setenta) anos de idade. Disponível em: <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-15.160-de-3-de-julho-de-2025-640214316>   Acesso em: 17 de julho de 2025.

[2] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2024. Disponível em: https://publicacoes.forumseguranca.org.br/handle/123456789/253. Acesso em: 17 de julho de 2025.


Como citar esse texto: LIMA, Ruth; ALBAN, Rafaela. Uma visão da nova Lei nº 15.160/2025: entre inconstitucionalidades, simbolismo penal e direito penal de exceção. Disponível em: <www.rafaelaalban.adv.br>. Publicado em: 18 jul. 2025.