Em 26 de junho de 2024, por maioria dos votos, o Supremo Tribunal Federal (STF) finalizou o julgamento que descriminalizou o porte de maconha para uso pessoal e fixou critérios de aferição objetiva para diferenciar usuários de traficantes, consubstanciados em 40 gramas de cannabis sativa ou seis plantas-fêmeas: quantidade e natureza de substância entorpecente pela qual o indivíduo será presumido, relativamente, mero usuário de drogas, ou seja, não “outsider” ou traficante.
A
decisão da Suprema Corte foi prolatada no bojo do Recurso Extraordinário RE
635.659/SP, com repercussão
geral (Tema 506), que contou com a relatoria do ministro Gilmar Mendes e foi
levado ao STF, no ano de 2011, pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo
para questionar uma condenação à prestação de serviços comunitários, pelo
período de 2 meses, de um homem que portava 3 (três) gramas de maconha dentro
do centro de detenção provisória de Diadema (SP).
Naquela oportunidade, o Defensor trouxe nas suas razões a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei nº 11.343/2006 (conhecida como Lei de Drogas), afirmando que o dispositivo atentaria contra os direitos fundamentais à intimidade e à privacidade do cidadão.
Mas,
o julgamento do RE 635.659/SP, que teve início em 2015, sofreu diversas
interrupções e apenas foi retomado em 20 de junho de 2024, quando já havia
cinco votos contra três para afastar a criminalização do porte de maconha para
consumo pessoal, corrente que foi inaugurada pelo Relator do caso e acompanhada
pelos Ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e Rosa
Weber (hoje aposentada). O ministro Dias Toffoli, único a votar na sessão
realizada no último mês, chegou a abrir uma terceira corrente de discussão - ao
considerar que o Congresso (e não o Supremo) deveria definir a quantidade para
diferenciar usuário de traficante de cannabis -, todavia reajustou o voto, a posteriori, para formar a maioria,
declarando-se a favor da descriminalização do porte de maconha para consumo
pessoal.
Pois bem, apesar da divergência suscitada, em 26 de junho de 2024, por seis votos a três, o STF deu provimento ao Recurso Extraordinário e declarou, incidentalmente, a inconstitucionalidade da criminalização do porte de maconha para consumo próprio, decidindo que portar maconha para uso pessoal é uma infração administrativa e, também, que será presumido usuário quem adquirir, guardar, depositar ou transportar até 40 gramas de cannabis ou até seis plantas fêmeas, mantendo, in totum, as regras atuais de proibição para as demais drogas. Nesse universo, foram vencidos os votos dos Ministros Cristiano Zanin, Kassio Nunes Marques e André Mendonça, contrários à descriminalização.
Diante da relevância do debate, não há dúvida de que algumas digressões acerca do tema precisam ser apresentadas, que partem, necessariamente, de dois esclarecimentos técnicos iniciais:
(1) Primeiro, com a decisão do
Supremo Tribunal Federal, o porte de maconha para consumo deixou de ser crime,
mas o uso continua vedado. Isso porque, a conduta subsiste como ilícito administrativo,
inclusive, sancionado como as penalidades já previstas na legislação;
(2) Segundo, o critério da quantidade de entorpecentes é relativo (e não absoluto), podendo sucumbir diante de outros elementos que demonstrem a traficância, como artefatos relacionados ao tráfico (p.ex., caderno com anotações da mercancia e balança de precisão) ou o próprio flagrante da venda. Assim, se houver indícios de traficância, a apreensão de até 40 gramas de cannabis não impede o enquadramento por tráfico de drogas, e nem desautoriza a condução do abordado à delegacia e a apreensão do material, caso que caberá à autoridade policial verificar se a situação realmente pode ser configurada como porte para uso pessoal. O mesmo vale para o contrário: apreensões de quantidades superiores ao limite estabelecido não obstam o reconhecimento da condição de usuário.
Posto isso, nota-se que, com essa importante decisão, o STF se alinha ao STJ (que vinha autorizando o plantio de maconha para fins terapêuticos), sinalizando uma possível guinada na política de drogas brasileira, que vem a aproximar o Brasil de uma tendência mundial pautada na substituição do caduco proibicionismo por uma abordagem menos repressiva e mais racional, eficaz e humana da questão das drogas, que inclui estratégias de redução de danos pelo viés da descriminalização e da legalização, aliada a ações de saúde pública.
Assim
caminham, por exemplo, as primeiras experiências da legalização da maconha nos
estados norte-americanos de Washington e Colorado (2012) e no Uruguai (2013).
No mesmo sentido, a experiência de Portugal, que, desde 2001, descriminalizou o
consumo de todas as drogas (incluindo cocaína, maconha e heroína) e estabeleceu,
como critério para diferenciação entre usuários e traficantes, o porte de
quantidade de drogas suficientes para consumo médio individual pelo período de
10 dias.
De
fato, essa mudança de orientação insculpida no novel acórdão reflete,
sobremaneira e em perspectiva mundial, o reconhecimento da necessidade de
repensar um novo paradigma para enfrentamento do problema das drogas, uma vez
que o atual sistema de controle bélico, traduzido na denominada guerra às
“drogas”, já se mostrou ineficaz e, definitivamente, falido nos seus fins
declarados.
Aliás, sobre esse ponto, dentre as várias questões que podem ser levantadas, é preciso atentar para o fato dessa caduca opção de política criminal já ter redundado numa estratégia adotada pelo país, baseada, fundamentalmente, no combate às redes varejistas de drogas localizadas em favelas, constituídas pelos pequenos traficantes, assim compreendidos como o “dono da boca” (chefe do morro), o “gerente” (braço-direito do chefe do morro), o “vapor” (pequeno vendedor), o “avião” (aquele que busca e entrega a droga para o cliente) e o “olheiro” (o vigia).
Não
fosse apenas o fato desses personagens serem desorganizados, venderem drogas
para sustentar o próprio vício e serem facilmente substituídos em caso de morte
ou prisão, o erro na estratégia brasileira consiste no fato de que o varejo
constitui, tão apenas, um dos cenários dos quais o complexo comércio de tóxicos
se desenvolve, existindo, antes, o espaço de investimento e produção que lhe dá
sustentação, não adequadamente enfrentado pela política criminal adotada na
legislação defasada.
Afinal,
para a formação do comércio varejista, o mercado transnacional apoiou-se em uma
rede de pontos fixos para distribuição de cocaína e maconha nas periferias das
cidades brasileiras – comumente conhecidos como “bocas de fumo” (MACHADO DA
SILVA, 2010) –, que contou com o exitoso recrutamento da juventude empobrecida,
trabquilamente atraída pelas oportunidades de ganho fácil e rápido, uma vez que
a outra opção seria o desemprego, o trabalho mal pago ou, de outro modo, a
criminalidade (MISSE, 2006).
Foi ignorando essa perspectiva sistêmica, com o propósito de reprimir o tráfico varejista, que, há mais de 50 anos, o Brasil se manteve insistindo no paradigma proibicionista da guerra às “drogas” e, longe de cumprir a promessa de erradicar a circulação e consumo das substâncias entorpecentes, concorreu para a própria criminalização do uso e estigmatização de usuários.
Nesse
ponto, é preciso registrar que o uso de drogas nem sempre foi criminalizado no
Brasil, embora seja verdade que existiram duas experiências históricas de
controle sobre o consumo de substâncias entorpecentes: 1) na colônia, a
proibição do consumo de aguardente de cana,
já que a expansão da bebida
brasileira começava a ameaçar o comercialização do “vinho de palma”, à época,
bebida produzida na metrópole portuguesa; 2) no império, onde se tem notícia de um
documento produzido pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro, penalizando a venda e o uso de “pito do
pango” (a maconha).
Entretanto,
apesar dessas vedações episódicas, o proibicionismo das drogas, no Brasil, é
uma realidade instaurada desde o início do século XX, quando, por meio do
Decreto nº 2.861, de 8 de julho de 1914, o país subscreveu a Convenção
Internacional do Ópio de 1912, isto é, o primeiro documento internacional a
estabelecer uma política de controle de tóxicos. Nesse documento, quanto ao uso
de drogas psicoativas, a questão das drogas foi tratada como um problema
sanitário e, por isso, era destinado, ao usuário (doente), o tratamento e, ao
traficante (criminoso), a punição. Trata-se daquilo que Rosa Del Olmo (1990)
denominou como “ideologia da diferenciação", que estabeleceu a diferença
entre usuários e traficantes, ou, nas palavras de autoria, “a polaridade entre
o bem e mal – entre Caim e Abel – que o sistema social tanto necessita para
criar consenso em torno dos valores e normas que são funcionais para sua
conservação”.
Com
a superveniência do artigo 281 do Código Penal de 1940, que criminalizou o
tráfico de drogas, surgiram muitos debates a respeito da responsabilização dos
usuários, mas o STF entendia que a norma não criminalizava o uso pessoal. O
cenário, mudou, entretanto, na década de 1970, com a disseminação da guerra “às
drogas” norte-americana, declarada por Nixon, que acabou por estimular, interna
e externamente, ações de repressão ao tráfico, através de forte militarização
do aparato policial e, sobretudo, da ideia de um inimigo interno a ser
combatido (o traficante).
Posteriormente,
acolhendo à orientação internacional da época, o Brasil endureceu sua política
de combate às drogas e, por meio da Lei nº 6.368/1976 (antiga Lei de Drogas), modificou
o artigo 281 do CP/1940 para aumentar a pena do tráfico de drogas e criminalizar
o uso de entorpecentes com pena de detenção de 6 meses a 2 anos, sem fixar
critérios de distinção dos dois sujeitos.
Atualmente, a Lei nº 11.343/2006 substituiu a Lei nº 6.368/1976, criminalizando o tráfico de drogas (artigo 33) e o porte para uso pessoal (artigo 28), mas manteve a omissão da legislação anterior, não estabelecendo critérios objetivos para diferenciar legalmente usuários e traficantes de drogas ilícitas, sendo esse o segundo ponto da decisão do STF que interessa ao presente artigo.
A questão, per si, é de extrema relevância, uma vez que a Lei nº 11.343/2006 governa usuários e traficantes de modo, completamente, diferente. Afinal, dentre outros, enquanto o tráfico de drogas é um dos crimes que recebe o tratamento mais rigoroso do sistema punitivo, com pena de reclusão de 5 a 15 anos (inclusive, delito equiparado à hediondo, nos termos constitucionais), o porte para uso pessoal, com imprecisão técnica, é crime não sancionado com pena privativa de liberdade, mas com penas alternativas. Vê-se ai a razão de Marcelo Campos (2015) identificar a Lei de Drogas como um “dispositivo médico-criminal”.
Para
melhor delimitação do problema levado à Suprema Corte, é preciso rememorar que
o tráfico de drogas está previsto no artigo 33, caput, da Lei nº
11.343/2006, sendo caracterizado, sem prejuízo das formas equiparadas do §1º,
pelas condutas típicas de importar, exportar, remeter, preparar, produzir,
fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito,
transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo
ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo
com determinação legal ou regulamentar.
Já
o porte para uso pessoal, está previsto no artigo 28, caput, da Lei nº
11.343/2006, a partir do qual se considera usuário aquele que adquirir,
guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo
pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou
regulamentar. Ainda, recebend o mesmo tratamento penal do usuário, aquele que,
para consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação
de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência
física ou psíquica (artigo 28, §1º).
Ao
examinar esse “oceano” de verbos nucleares que tipificam os delitos, consta-se,
muito facilmente, que as condutas típicas “adquirir”, “guardar”, “ter em
depósito”, “transportar” e “trazer consigo” se enquadram tanto no artigo 33
como no artigo 28, o que, per si, já pode ensejar confusões entre as
figuras do traficante e do usuário de drogas.
O
imbróglio, porém, é relativamente resolvido pela dogmática penal, na medida em
que o tipo penal previsto para o usuário de drogas requer um elemento subjetivo
especial (a intenção do agente em ter a droga para consumo próprio) e a ciência
penal estabelece, dentre seus critérios de solução do conflito aparente de
normal, o princípio da especialidade, que vem a ser atraído por aquele elemento
especificador.
O
problema é que, como o dolo específico decorre de um processo mental e não é
possível ingressar na mente do agente, a sua presença somente pode ser percebida
contextualmente, tornando premente a necessidade de fixação de parâmetros
objetivos, inclusive para acessar essa finalidade.
Entretanto,
não há, na Lei nº 11.343/2006, o mínimo
esforço para distinguir objetivamente as figuras do usuário e traficante, ficando
apenas consignado que essa diferença residiria, genericamente, na natureza e na
quantidade da substância, no local e nas condições em que se desenvolveu a
ação, nas circunstâncias sociais e pessoais, bem como na conduta e nos
antecedentes do agente.
É o que diz o parágrafo 2º do artigo 28 da Lei nº 11.343/2006, in verbis:
Art. 28 [...] § 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
Pela simples leitura do dispositivo acima transcrito, pode ser bem percebido que a formulação legal, de fato, é absolutamente insuficiente, especialmente porque traz critérios complementarmente abertos e, em sua maioria, subjetivos, que podem vir, inclusive, a orientar a aplicação seletiva da lei, ao estabelecer parâmetros preconceituosos, como o local e as condições sociais do indivíduo.
No
entanto, guardando essa última questão da seletividade para momento posterior,
foca-se, por ora, no primeiro problema, que diz respeito à ausência de
parâmetros objetivos para diferenciar usuários de traficantes, em especial, a
quantidade de entorpecentes.
De
fato, para o arrepio da legalidade estrita, não é surpresa que, no âmbito do
tráfico de drogas, haja ampla aplicabilidade de conceitos vagos, sobretudo, em
razão da gravidade em abstrato atribuída ao delito. Porém, é preciso dizer que
o uso de conceitos extremamente abertos, sem indicação clara de parâmetros de
distinção, para além de violar o princípio da legalidade, vem sendo
responsável, na prática, pelo enquadramento de meros usuários como se
traficantes fossem, especialmente diante da ausência de utilização legislativa
do critério “quantidade da droga”.
Nesse sentido, em importante estudo, Juliana Carlos (2015) demonstra que, apenas no estado de São Paulo, a simples previsão de um quantitativo, como critério distintivo, teria evitado a prisão de 3.288 usuários de maconha e 2.186 usuários de cocaína no ano de 2011. Nesse estudo, Carlos compara dados de São Paulo com países que utilizam como critério objetivo de diferenciação a “quantidade-limite” (QLS), evidenciando como a ausência de parâmetros distintivos claros entre usuários e traficantes pode levar à incriminação de meros usuários, que poderiam estar soltos, caso a lei brasileira tivesse fixado algum critério objetivo. Por esses mesmos resultados, fica evidente que a Lei de Drogas tem papel decisivo nos crescentes números do encarceramento.
Veja-se,
nessa conjuntura, que o §2º do artigo 28 da Lei nº 11.343/2006 determina que
caberá ao juiz, com base naqueles critérios vagos e genéricos, definir o
delito. Contudo, em que pese seja essa a determinação, na prática, a definição
do suspeito como usuário ou traficante se baseia em critérios subjetivos, com
amplo poder discricionário da polícia de rua. Ou seja, no limite, quem define
quem é usuário e quem é traficante são policiais militares, responsáveis pelo
policiamento ostensivo e que realizam a quase totalidade dos flagrantes de
tráfico de drogas.
Isso
porque, como explica Maria Gorete Marques de Jesus (2016, p. 60-61), são os
policiais do flagrante delito que primeiramente tomam contato com o caso e que,
portanto, classificam “algo” como criminoso, encaixando-o num formato
previamente jurídico. É dizer, são os policiais que narram os fatos como crime
e oferecem – a delegados, promotores e juízes – os indícios de “materialidade” e
“autoria” de “algo”, ao descreverem as circunstâncias da prisão, dizer que o
local é conhecido como ponto de tráfico, afirmar quem estava com a droga ou a
quem pertencia, afirmar que o sujeito confessou informalmente o delito, entre
outros elementos que virão a ser considerados por aqueles operadores do
direitos.
Sob
essa perspectiva, Jesus (2016) afirma que, especialmente, nos processos de
tráfico de drogas, a narrativa do flagrante delito é recepcionada como uma
verdade por delegados, promotores e juízes, que, até mesmo por não participarem
da ocorrência, buscarão apenas ratificá-la diante de uma crença subjacente de
legitimidade da atuação policial, umbilicalmente atrelada a uma descrença na
fala do investigado/acusado, aprioristicamente, dado como “mentiroso”.
Portanto, a definição do delito (se uso ou tráfico) passa, inevitavelmente,
pela interpretação dos fatos fornecida pelos policiais de rua.
Luís Carlos Valois (2017, p.457) compartilha o mesmo entendimento:
Quando uma pessoa chega ao judiciário indiciada como autora da prática do crime do art. 33 da Lei de Drogas, ela não é mais uma simples acusada, após a denúncia não é uma simples ré, mas passa a ser um traficante, independentemente conduta atribuída entre aqueles tantos artigos da lei citada. A força da palavra policial não se reflete apenas na importância atribuída pelo judiciário, mas contamina desde os corredores do fórum até as partes no processo
Voltemos
então àquela questão da seletividade penal, questiona-se: se, segundo os
referenciais teóricos adotados, esse é o axioma, como o sistema de justiça
criminal no Brasil vem, nesse caso, selecionando a sua clientela?
Incitada
por essa indagação, em “Difíceis ganhos
fáceis” (2003), Vera Malaguti Batista, diante da disseminação do varejo de
cocaína nas favelas do Rio de Janeiro, na década de 1970, buscou investigar o
estereótipo criminal do traficante e usuário, que começava a ser formando
naquele momento, inclusive com o apoio da mídia. Desse modo, analisando um
total de 180 fichas relativas a adolescentes infratores envolvidos com comércio
de drogas ilícitas no Rio de Janeiro, de 1968 a 1988, extraídas do arquivo do
extinto Juizado de Menores, constatou que, para o sistema de justiça, a figura
do “traficante” identificava-se como um rapaz jovem, pobre, negro e morador da
favela.
Enquanto
ex-delegado da Polícia Civil, experiência mais recente vivenciada por Zaccone
confirma a aplicação seletiva dos estereótipos do “traficante” e do “usuário”:
(...) um delegado do meu concurso, lotado na 14 DP (Leblon), autuou, em flagrante, dois jovens residentes na zona sul pela conduta descrita para usuário, porte de droga para uso próprio, por estarem transportados, em um veículo importado, 280 gramas de maconha (...), o que equivaleria a 280 “baseados” (...) o fato de os rapazes serem estudantes universitários e terem emprego fixo, além da folha de antecedentes criminais limpa, era indiciário de que o depoimento deles, segundo o qual traziam a droga para uso próprio era pertinente (ZACCONE, 2007, p. 19-20).
Pertinente,
nesse caso, citar a Pesquisa do Núcleo de Estado da Violência da USP (2011),
que, mediante análise de 667 autos de prisão em flagrante e casos de tráfico na
cidade de São Paulo, constatou que o perfil das pessoas presas em flagrante por
tráfico é quase sempre o mesmo: homens (87%), jovens entre 18 a 29 anos
(75,6%), negros (59%), com baixa escolaridade e empregos precários e informais.
Conclusão
semelhante foi alcançada por Beatriz Vargas Ramos Rezende (2011), a partir de
análise de sentenças proferidas pelas quatro Varas de Entorpecentes do Distrito
Federal, em processos iniciados em 2009. Constatou-se, dessa maneira, que os
processados por tráfico de drogas são os pequenos traficantes, identificados
como homens pobres, com nenhuma ou baixa qualificação profissional e que, em
sua maioria, são usuários de drogas, primários e não integrantes de associação
voltada para o tráfico de entorpecentes.
O
cenário demonstrado por essas pesquisas não soa estranho, sobretudo quando
considerado que a própria Lei de Drogas reforça a seletividade, no seu §2º do
artigo 28, inserindo, como critério de diferenciação entre usuários e
traficantes, o local e as condições sociais do indivíduo.
Portanto,
diante da conjuntura delineada, a decisão do STF chega em momento oportuno e a
adoção de critérios objetivos possui, em tese, a aptidão de trazer maior
racionalidade, justiça e equidade na aplicação da lei penal de drogas,
sobretudo, estabelecendo limites à discricionariedade policial.
No
entanto, mesmo ainda não tendo sido disponibilizada a integra do acórdão, é
possível constatar que a decisão do STF é insuficiente e incoerente, pois, em
que pese a descriminalização do porte para uso pessoal, aparentemente, não houve
maiores especificações referentes ao plantio para consumo pessoal (que romperia
a relação entre usuários e traficantes), além de terem sido mantidas a
atribuição da polícia e da justiça criminal no trato dos usuários. Explique-se,
como a Lei de Drogas não traz qualquer procedimento administrativo, os usuários
continuarão sendo encaminhados à Delegacia para o registro de ocorrência como
infração administrativa e liberados em seguida, sendo, a posteriori, notificados
para comparecerem em juízo para serem ouvidos e, se for o caso, aplicadas as
sanções de caráter não-penal prevista na Lei nº 11.343/2006.
Em termos de futurologia, a decisão
também pode se revelar inócua, pois de nada adianta uma presunção que pode ser
relativizada no caso concreto, quando as políticas de segurança pública dos
estados continuem pautadas na “guerra às drogas”. Por
isso, infelizmente, percebe-se que a tendência é que usuários continuem sendo enquadrados como traficantes, a
depender de demarcadores sociais, como cor, idade, gênero, classe e território.
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Como citar esse texto: ALBAN, Rafaela; LIMA, Ruth. Polaridade “Caim e Abel”: STF descriminaliza porte de maconha para uso pessoal e fixa critérios objetivos para diferenciação entre usuários e traficantes. Disponível em: <www.rafaelaalban.adv.br>. Publicado em: 19 jul. 2024.
2019-2024 © Rafaela Alban