A palavra “assédio” remete a um vasto campo de discussão jurídica e social, pois, além das questões relativas aos enquadramentos técnicos, são inúmeros os questionamentos sociais sobre as políticas governamentais que precisariam ser adotadas para combater e coibir práticas de assédio contra os grupos vulneráveis.
Dentre as espécies do gênero assédio, destaca-se aqui duas: o assédio moral e o assédio sexual. Com relação à primeira espécie, é importante chamar à atenção para o fato de que a sua maior incidência é nas relações de trabalho[i] e, como se sabe, até o momento, apesar da existência de alguns projetos de lei, não há um enquadramento típico imediato no âmbito do Direito Penal, já que não existe o crime de assédio moral. Na realidade, no universo jurídico-penal atual, a possibilidade de incidência criminal parece cingir-se às situações fáticas passíveis de subsunção à moldura típica do crime de injúria.
Fala-se em “possibilidade”, explique-se, porque há uma diferença conceitual entre o assédio moral e o crime de injúria, previsto no artigo 140 do Código Penal para tutelar a honra subjetiva da vítima que sofre ofensas à sua dignidade ou decoro. Isso porque, tecnicamente, o assédio moral vem a ser conceituado como uma “conduta abusiva, manifestando-se, sobretudo por comportamentos, palavras, atos, gestos, escritos que possam trazer danos à personalidade, à dignidade ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa, pôr em perigo o seu emprego ou degradar o ambiente de trabalho”[ii].
No âmbito do Direito do Trabalho, fala-se, inclusive, em “gestão por injúria”, que igualmente não caracteriza diretamente um crime, mas um tipo de comportamento despótico de certos administradores, que submetem os empregados a uma pressão terrível ou os tratam com violência, injuriando-os e insultando-os, com total falta de respeito[iii].
Não obstante, como a injúria é um tipo penal que tutela a honra subjetiva – ou seja, o sentimento que cada um tem acerca de seus próprios atributos físicos, morais ou intelectuais –, acaba por ser plenamente possível que algumas condutas de assédio moral, em determinados contextos, possam ser consideradas como injuriosas e passíveis de consequências de cunho criminal, seja para tutela da dignidade (atributos morais) ou do decoro (atributos físicos ou intelectuais) da vítima.
Até mesmo por esse motivo, não é demais lembrar que boa parte da fundamentação trabalhista em processos de assédio moral perpassa pela defesa da honra, prevista no artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal.
Porém, em outra perspectiva de análise, deve-se ressaltar que o assédio moral normalmente depende de um contexto específico para sua configuração e que, além dessa especificidade, pode esbarrar no imperioso caráter de ultima ratio do Direito Penal, que pode vir a justificar, até mesmo, a ausência de tipificação penal da conduta de inquestionável repercussão laboral.
Em outra esteira de abordagem, se tem o assédio sexual, o qual, com máxima razão, conta com tipificação criminal no 216-A do Código Penal para tutelar a liberdade sexual das pessoas no exercício de emprego, cargo ou função. Nessa segunda espécie do gênero assédio, apesar da maior incidência em ambientes laborais, a repercussão típica ultrapassa os “muros” das relação de trabalho ou emprego.
Isso porque, apesar de ser atípico o assédio proveniente de relações domésticas, de coabitação ou hospitalidade, ou, ainda, aquele proveniente de abuso de dever inerente a ofício ou ministério (objeto de veto presidencial), a ideia de “ascendência”, trazida pelo tipo penal, permite a subsunção de condutas “extra laborais” ao tipo penal do art. 216-A do Código Penal.
Nesse sentido, é imperioso chamar à atenção, por exemplo, para o fato de que o Superior Tribunal de Justiça já reconheceu que é irrazoável excluir a relação de ascendência (elemento normativo do tipo) nos casos em que um docente venha a violar deveres funcionais e morais (consistente em atribuir notas, reconhecer o mérito e aprovar o aluno) para substituir a ideia de desempenho intelectual por eventual barganha sexual (REsp n. 1.759.135/SP).
Aliás, no importante julgado acima referenciado, o Ministro Rogério Schietti chegou a registrar que “a ‘ascendência’ constante do tipo penal objeto deste recurso não deve se limitar à ideia de relação empregatícia entre as partes”, abrindo espaço para as discussões relativas ao assédio sexual contra vulneráveis em outros setores.
É ainda digno de registro que, mesmo antes de sua introdução no Código Penal, o crime de assédio sexual foi alvo de muita controvérsia, ocasionada pela disputa entre setores da sociedade que defendiam a tipificação da conduta como forma de proteção à mulher e por setores que entendiam ser incabível a tutela penal desse fenômeno, tendo em vista sua possível coibição por outros ramos do Direito (RIBEIRO, 2013, p. 132).
Tal discussão, diga-se, foi motivada por uma clara inversão legislativa no sistema de tutela: o Código Penal foi o primeiro diploma que tratou do assunto de maneira expressa, deslocando-se do campo da ultima ratio para a prima ratio.
Todavia, o debate é sensível, porque também envolve questões de gênero, na medida em que a discriminação sexual permeia grande parte das condutas, que indicam com clareza que mulheres são postas em situação inferior somente por conta desta condição. Exatamente por esse motivo, as mulheres são as vozes de incontáveis campanhas governamentais que visam coibir o “assédio”, como a campanha do “Não é Não” no Carnaval ou a “Não se Cale” do Governo do Mato Grosso do Sul.
Mas, se, por um lado, as questões de gênero são determinantes para justificar a ausência de violação ao caráter subsidiário do Direito Penal no enfrentamento jurídico do assédio sexual, por outro demonstram que a legislação ainda é insuficiente para esse desiderato e que as campanhas governamentais podem causar falsas impressões, já que só é possível se falar em “assédio sexual” em casos de relação de subordinação entre autor e vítima (laboral ou de ascendência) e o enquadramento de alguns “assédios” em outros crimes (como injúria, estupro ou importunação sexual) podem esbarrar em outras exigências típicas de cunho objetivo ou subjetivo.
Afinal, como já esclarecido, só será possível falar em crime de injúria se houver a imputação de uma qualidade depreciativa violatória da dignidade ou decoro, da mesma forma que só há estupro se houver “conjunção carnal” ou “ato libidinoso diverso” (art. 213) e que só há importunação sexual diante de condutas de “praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro” (art. 215-A).
[i] Dados do Tribunal Superior do Trabalho (TST) apontam que, somente em 2021, foram ajuizados, na Justiça do Trabalho, mais de 52 mil casos relacionados a assédio moral no Brasil. Disponível em: https://www.trt13.jus.br/informe-se/noticias/em-2021-justica-do-trabalho-registrou-mais-de-52-mil-ca.... Acesso em: 01 mar. 2023.
[ii] HIRIGOYEN, Marie-France. Assédio moral: a violência perversa do cotidiano. 7.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005, p.65.
[iii] HIRIGOYEN, Marie-France. Assédio moral: a violência perversa do cotidiano. 7.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005, p. 66.
Como citar esse texto: ALBAN, Rafaela. Assédio e seu enfrentamento jurídico-penal. Disponível em: <www.rafaelaalban.adv.br>. Publicado em: 03 mar. 2023.
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