A obscuridade legislativa das Apostas Online: uma prática penalmente relevante?

Artigo escrito pelas nossas estagiárias Giovanna de Sá e Ruth Lima

Falar de apostas online é falar de um mercado em clara e indubitável ascensão, tanto no aspecto social, quanto no econômico. Mas, induvidoso é também o cenário repleto de obscuridades que aflige e rodeia as apostas online, até mesmo pela deficiência regulatória dessa prática em contexto legislativo brasileiro.

A falta de regulamentação não é a única problemática relevante que assombra este tema, tem-se também o fato de que a exploração de jogos de azar é punida no Brasil como contravenção penal, tipificada no art. 50 do Decreto-Lei nº 3.688/41, que alcança expressamente apostas sobre competição esportiva e as pessoas que participam da atividade como meros apostadores.

Entretanto, diante dos princípios e diretrizes que lastreiam o Direito Penal, faz-se imprescindível discutir em que circunstâncias as apostas esportivas, realizadas online, se firmaram e se constituíram no Brasil e pelo mundo e quais marcos regulatórios contornam essa prática, discutindo, a vista disso, a relevância jurídica da referida conduta do ponto de vista do Direito Penal, especialmente sob uma perspectiva principiológica.

Ab initio, a contextualização histórica mostra-se essencial. Foi ainda durante os anos 90 que as apostas esportivas online tiveram início, propiciando o surgimento de empresas no mercado que exploravam esse serviço, de sorte que, por volta de 1996, foi criado o primeiro site de apostas esportivas do mundo: a chamada “Intertops”, que começou como uma empresa física nos EUA e, diante do potencial oferecido pela internet, obteve grande sucesso e gerou altos números de apostadores.

Desse modo, diante do crescimento nessa esfera, as empresas de apostas online começaram a oferecer serviços diversificados para chamar atenção dos consumidores, de forma que, em 2003, pesquisas passaram a indicar um grande aumento das apostas online, que culminou no lançamento, neste mesmo ano, do primeiro aplicativo móvel para celular, o chamado “Bet on the move”, uma ideia da Sporting Index para facilitar a vida de seus clientes e massificar a prática.

Foi a partir deste cenário, portanto, que a indústria das apostas teve um “boom” na América do Norte, chegando, por exemplo, a atingir o montante apostado de U$S 50 bilhões, apenas em esportes americanos, em 2009. Além disso, sobretudo com a inserção da tecnologia a partir de 2010 e do investimento cada vez mais significativo em publicidade, tornou-se comum ver celebridades e atletas sendo patrocinados pelas marcas. Houve, então, a nível mundial, um estrondoso aumento do número de praticantes e, consequentemente, a solidificação do mercado.

A realidade é que hoje existe um mercado estabelecido em torno das apostas esportivas, que cresce exponencialmente e movimenta bastante a economia de tal maneira que, atualmente, as apostas online em geral geram cerca de US $100 milhões para grandes empresas [1].

Não obstante, é neste ínterim, que o mercado de apostas vem se tornando um ambiente propício para o surgimento de diversas problemáticas, que vão desde a questão do vício às fraudes e manipulação nas apostas, até ao uso deste mercado para a prática de diversos crimes.

Exemplos disso não estão distantes, de forma que a “Sétima Arte” cuida de fornecer preciosos exemplos dessas questões que giram em torno das apostas esportivas e jogos de azar, como é o caso do filme “Jóias Brutas” (2020), protagonizado pelo ator Adam Sandler, que interpreta um dono de joalheria endividado por conta de seu vício em apostas esportivas. Ou, ainda, a obra “Golpe Duplo” (2015), protagonizado por Will Smith, cujo o personagem “Nicky” é um golpista profissional que constrói uma quadrilha, que utiliza os jogos para aplicar golpes e outras atividades ilegais.

Todavia, longe de ficar restrito a ficção, dado a grande quantidade de dinheiro envolvido, deve-se rememorar o escândalo esportivo que ocorreu na Ásia em 2013, em que houve a manipulação de aproximadamente 380 partidas de futebol pela Europa e que movimentou mais de £300 bilhões em apostas ilegais.

Desta maneira, resta imperiosa a discussão sobre a regulamentação legal do mercado de apostas online, bem como acerca da relevância jurídica da criminalização, especificamente em relação à realidade brasileira, visto que o Brasil é o terceiro maior mercado de apostas online do mundo – ficando atrás apenas dos EUA e da China – e que, dado a crescente parcela populacional com acesso à internet (cerca de 152 milhões de brasileiros ou 81 % da população), a perspectiva é de pleno crescimento nos próximos anos.

Além disso, as apostas online se tornam cada vez mais disseminadas socialmente, principalmente por conta da relevância do futebol no país, de forma que, segundo dados do BNL Data, só em 2022, o mercado de apostas online movimentou cerca de R$ 7 bilhões e estima-se que em 2023 alcance a marca de R$ 12 bilhões [2] !.

O problema é que, na contramão do crescimento exponencial dessa prática no Brasil, depara-se com a ausência de uma regulamentação específica e devida. A falta de leis gera dúvidas e riscos, especialmente diante da inexistência de clara delimitação do que é permitido e proibido e da ausência de mecanismos de controle à manipulação de resultados e fraudes de apostas. Desse modo, inquestionavelmente, torna-se imprescindível a regulamentação do setor de apostas online, seja para fins tributários ou para evitar a prática de ilícitos.

Nesse aspecto, nota-se, no cenário legislativo, que o ex-presidente Michel Temer, no mês de dezembro de 2018, aprovou a Lei nº 13.756/18, que “regula” temporariamente o sistema dessas apostas no Brasil, introduzindo e autorizando as denominadas “apostas de quota fixa” (AQFs), que são identificadas em território nacional como modalidade lotérica, isto é, dentro do leque de opções já por todos bem conhecidos como a Mega-Sena, Lotomania, Loteria Federal, etc.

No entanto, diferentemente das demais variações de loterias, as apostas esportivas apresentam elementos de definição que impactam significativamente o panorama jurídico-regulatório. Além disso, de forma bastante singular, especialmente se comparadas às jurisdições estrangeiras, essas modalidade de apostas seguem o regime jurídico (polêmico, mas mantido e reafirmado pelo STF em julgamento de ADPF) administrativo típico das loterias, de serviço público [3] .

Além disso, é notória a inércia governamental após o esgotamento do prazo definido pela Lei 13.756/18 para que houvesse o estabelecimento de regras no que tange as apostas online no Brasil ou, como definidas, as “Apostas de Quotas Fixas”, em que o trâmite burocrático deveria ter sido conduzido pelo Ministério da Economia, através da Secretaria de Avaliação de Políticas Públicas, Planejamento, Energia e Loteria.

Logo, a regulamentação do setor das apostas online se impõe como uma efetiva necessidade, que pode possuir o fito, inclusive, de promover a responsabilização extrapenal, seja pela responsabilidade civil de danos ou pelo âmbito do Direito do Consumidor, caso as empresas de apostas sejam enquadradas como "fornecedores'' e os apostadores como consumidores.

No âmbito penal, como já adiantado alhures, a realidade do Brasil é que a exploração de jogos de azar é hoje considerada como “contravenção penal relativa à política de costumes”, na forma do art. 50 do Decreto-lei nº 3.688/41 (Lei de Contravenções Penais), cuja punição alcança, inclusive, os apostadores.

Vejamos a previsão, in verbis:

 Art. 50. Estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessivel ao público, mediante o pagamento de entrada ou sem ele:

Pena – prisão simples, de três meses a um ano, e multa, de dois a quinze contos de réis, estendendo-se os efeitos da condenação à perda dos moveis e objetos de decoração do local.

Nesta esfera, vale apontar que impera, dentre as questões primordiais neste panorama, os seguintes questionamentos: (i) qual a legitimidade do art. 50 do DL 3.688/41 diante dos princípios penais? (ii) como seria possível o funcionamento da prática das apostas online no Brasil já que existe a tipificação da contravenção penal de exploração de jogos de azar?

Com certeza, a resposta para esses questionamentos – sem que haja a criação de tipo penal específico, mediante a "criminalização das apostas online” –, torna-se muito mais fácil de ser alcançada diante da vasta discussão em torno desta contravenção penal contraposta com o princípio da lesividade e com o caráter de ultima ratio do Direito Penal.

Como cediço, o Direito Penal – como ultima ratio legis – deve tutelar os mais importantes bens jurídicos, de forma que essa proteção somente deve ocorrer quando os demais ramos do Direito mostrarem-se insuficientes.

Nesse sentido, leciona Luiz Regis Prado:

“O princípio de intervenção mínima ou de subsidiariedade decorrente das ideias de necessidade e de utilidade da intervenção penal, presentes no pensamento ilustrado, estabelece que o Direito Penal só deve atuar na defesa dos bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens, e que não podem ser eficazmente protegidos de forma menos gravosa.[4]

Sob essa perspectiva, parece desnecessária a criminalização das apostas online, visto que, para além da existência da contravenção penal (já atingida por uma adequação social), possíveis práticas de ilícitos no âmbito do mercado de apostas já poderiam ser punidas por tipos penais já existentes, a exemplo do estelionato (art. 171, CP) ou de um furto mediante fraude (art. 155, CP), podendo ainda caracterizar “um crime de passagem”, sendo plenamente aplicável o princípio da consunção.

Portanto, a criação de mais um crime específico serviria tão apenas a alimentar um “Direito Penal simbólico”, incompatível com todos os princípios e diretrizes do sistema jurídico-penal. Além disso, a criação de um tipo penal para punir a conduta, por si só, de apostar, além de violar direitos fundamentais, seria de toda tormentosa no âmbito penal, esbarrando em discussões sobre vício e sobre o princípio da lesividade, segundo o qual somente as condutas humanas que exponham ou coloquem em risco de lesão bem jurídico alheio pode ser objeto de tipificação penal, sendo vedada a incriminação de atitudes que não excedam o âmbito do próprio autor.

De fato, em circunstâncias como a do “vício em apostas”, o tratamento criminal seria de todo imprudente, especialmente por almejar tratar de questão a ser corretamente inserida na pauta de saúde pública por meio de uma deslegítima intervenção penal.

Porém, não se deve olvidar da importância dessa discussão criminal, sobretudo no que diz respeito a idoneidade das apostas online, tendo em vista a corrente prática de manipulação de resultados.

Nesse ínterim, segundo a Associação Internacional de Integridade nas Apostas, a manipulação de resultados envolve uma indústria de criminosos em vários esportes. Houve 37 casos no ano de 2019 e o tênis liderou as denúncias com 17 casos suspeitos. Diante disso, o tênis resolveu investir em integridade com a participação da TIU - órgão que supervisiona o tênis profissional e tem a política de tolerância zero para a corrupção no meio das apostas [5].

Nesse bojo, o futebol, por ser o esporte mais praticado no mundo, é o que mais sofre com esses casos. Mas as demais modalidades de desporto também são visadas para essa prática, o que gera uma violação de princípios do esporte, bem como, a falta de credibilidade nas competições. Uma das causas que ajuda a explicar o crescimento dos casos de manipulação de resultados esportivos é a importância econômica assumida pela indústria esportiva, isso porque uma parte da movimentação da indústria do esporte provém do setor de apostas esportivas.

Sob essa ótica, o Compliance emerge como prática a ser aplicada de forma a prevenir fraudes nas apostas, manipulação de resultados e corrupção no esporte, inclusive várias instituições globais já adotaram programas do gênero como forma de prevenção de riscos.

Todavia, o fato de existir uma efetiva necessidade de controlar as práticas criminosas associadas às apostas online, não pode justificar uma defesa no sentido do maior alcance da contravenção do art. 50 do DL 3.688/41, tendo em vista que a tipificação da conduta por si só, há muito já flexibilizada pelo princípio da adequação social, esbarra no caráter ultima ratio do Direito Penal.

 

REFERÊNCIAS

[1] Como surgiram as apostas esportivas online? Conheça a história! BetMais, 2018. Disponível em: <http://blog.betmais.com/betmais/como-surgiram-as-apostas-esportivas-online/ />. Acesso em: 20 dez. 2022.

[2] MAGNO, José. Mercado de Apostas no Brasil: dados de crescimento em 2022. BNL Data, 2022. Disponível em: <https://bnldata.com.br/mercado-de-apostas-online-no-brasil-dados-de-crescimento-em-2022/>. Acesso em: 02 jan. 2023.

[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 493 DF. Relator: Gilmar Mendes. Julgamento: 30/09/2020. Publicação: 15/12/2020.

[4]   PRADO, Luiz Régis. Tratado de direito penal brasileiro, v.1. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p.285.

[5] KAMPFF, Andrei. A manipulação de resultados é um inimigo histórico do esporte. Como evitar? Disponível em: <https://leiemcampo.blogosfera.uol.com.br/2020/01/28/a-manipulacao-de-resultados-e-um-inimigo-histori...; Acesso em: 20 dez. 2022.

 

Como citar esse texto: DE SÁ, Giovanna; LIMA, Ruth. A obscuridade legislativa das Apostas Online: uma prática penalmente relevante?. Disponível em: <www.rafaelaalban.adv.br>. Publicado em: 03 jan. 2023.