Breves reflexões sobre o Racismo e a Injúria Racial diante da equiparação efetuada pelo Supremo Tribunal Federal

Texto de Opinião

Para entender a recente decisão proferida pelo STF nos autos do HC 154248/DF, é preciso estabelecer, em termos fáticos e jurídicos, a distinção conceitual entre os crimes de “injúria racial” (art. 140, §3º, do Código Penal) e “racismo” (art. 20 da Lei nº 7716/89), ambos modificados pela Lei n. 9.459/97.

Em um primeiro plano, tem-se a injúria racial como uma modalidade qualificada do crime de injúria (art. 140), caracterizado pela ofensa à honra subjetiva, que é praticada através de imputação de qualidades depreciativas que ofendem a dignidade ou decoro da vítima. Aqui o Código Penal prevê expressamente, dentre as formas de injúria preconceituosa (na qual a ofensa é referente à raça, cor, etnia, religião ou origem), o elemento “raça” (§3º), configurador da conhecida “injúria racial”.

Nesse caso, a injúria racial, como todos os demais crimes contra a honra, pressupõe que a ofensa seja endereçada a pessoa determinada ou, ao menos, a um grupo determinado de indivíduos. Assim, quando o agente se dirige a uma outra pessoa e a ofende fazendo referência à sua cor ou religião, configura-se a injúria qualificada[1].

De modo distinto, fala-se em crime de racismo, naqueles casos que se subsumam à Lei nº 7.716/89, que, entre os artigos 3º a 20, “define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor”, impondo uma repercussão de natureza criminal nas atuações preconceituosas que acabam indicando uma situação de segregação social por atingirem uma coletividade.

Como já se nota, os crimes aqui tratados podem gerar uma confusão interpretativa, especialmente quando analisado o art. 20 da Lei de Racismo, que prevê a conduta de “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.

Nesse caso, o que se deve ter em mente é que estará presente o crime de racismo (Lei nº 7.716/89) quando o agente, por meio de manifestação de opinião, se referir de forma preconceituosa indistintamente a todos os integrantes de certa raça (assim como cor, etnia, religião ou procedência nacional). Todavia, a situação será de injúria racial, quando a ofensa preconceituosa for dirigida a um sujeito específico ou a um grupo determinado de indivíduos.

Essa distinção, durante muitos anos, era essencial não apenas para a realização de uma adequada capitulação jurídica, como também para a correta imposição das repercussões decorrentes dos ditames constitucionais relativos ao racismo. Isso porque, conforme inciso XLII do art. 5.º da Constituição Federal, o “racismo” é um crime imprescritível e inafiançável!

Nesses aspecto, inclusive, pertinentes são alguns questionamentos doutrinários acerca da configuração e estipulação dos limites entre os dois tipos penais. Afinal, não se pode deixar de questionar: a ofensa a uma pessoa negra que é presenciada por várias outras não desencadeia a ofensa à coletividade negra? Como se pode entender que determinado ato ofende, ou não, o decoro íntimo de uma pessoa negra, em razão da sua raça ou etnia?[i].

A realidade é que o debate acerca do racismo e da injúria racial vai além do âmbito jurídico, e claramente adentra o âmbito político-social, criando discussões interdisciplinares fervorosas e decisões judiciais decorrentes de casos controversos.

Foi nesse ínterim que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por oito votos a um, decidiu em 28/10/2021 (HC 154.248), que o crime de injúria racial seria uma espécie do gênero racismo. Com isso, esvaziando as incansáveis discussões relativas às supostas necessidades de desclassificação de casos de racismo para injúria racial, afirmou que é também imprescritível a injúria racial, também na forma do artigo 5º, XLII, da Constituição.

Veja ementa abaixo:

HABEAS CORPUS. MATÉRIA CRIMINAL. INJÚRIA RACIAL (ART. 140, § 3º, DO CÓDIGO PENAL). ESPÉCIE DO GÊNERO RACISMO. IMPRESCRITIBILIDADE. DENEGAÇÃO DA ORDEM. 1. Depreende-se das normas do texto constitucional, de compromissos internacionais e de julgados do Supremo Tribunal Federal o reconhecimento objetivo do racismo estrutural como dado da realidade brasileira ainda a ser superado por meio da soma de esforços do Poder Público e de todo o conjunto da sociedade. 2. O crime de injúria racial reúne todos os elementos necessários à sua caracterização como uma das espécies de racismo, seja diante da definição constante do voto condutor do julgamento do HC 82.424/RS, seja diante do conceito de discriminação racial previsto na Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. 3. A simples distinção topológica entre os crimes previstos na Lei 7.716/1989 e o art. 140, § 3º, do Código Penal não tem o condão de fazer deste uma conduta delituosa diversa do racismo, até porque o rol previsto na legislação extravagante não é exaustivo. 4. Por ser espécie do gênero racismo, o crime de injúria racial é imprescritível. 5. Ordem de habeas corpus denegada (STF - HC: 154248 DF 0067385-46.2018.1.00.0000, Relator: EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 28/10/2021, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 23/02/2022).

Não há dúvida de que diversas foram e ainda são as repercussões desta decisão, principalmente em torno das questões envolvendo política criminal e o caráter ultima ratio do Direito Penal. Assim, é vasta a pauta de questionamentos: é tornando também a injúria racial imprescritível que as mazelas estruturais do racismo e das discriminações raciais serão resolvidas? Haveria aqui mais uma ação do Direito penal simbólico por meio do ativismo do judiciário?

Enfim, seja qual for a vertente adotada acerca doe posicionamento do STF, o fato é que a interpretação concedida pelo nosso Tribunal Constitucional traz uma importante mensagem associada aos eventos relativos à escravidão e às suas incontestáveis consequências sociais e culturais.


[1] GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito penal: parte especial / Victor Eduardo Rios Gonçalves. / coord. Pedro Lenza. – 11. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2021. p. 520.

[i] MUNHOZ, Maria Letícia; BRANDÃO, Juliana. Nas entrelinhas da distinção dos crimes de injúria racial e racismo. Disponível em: https://www.ibccrim.org.br/noticias/exibir/6527/. Acesso em: 16 de novembro de 2022.

Como citar esse texto: ALBAN, Rafaela; DE SÁ, Giovanna. Breves reflexões sobre o Racismo e a Injúria Racial diante da equiparação efetuada pelo Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <www.rafaelaalban.adv.br>. Publicado em: 17 nov. 2022.