Há muito tempo se observa que o constante incremento da legislação extravagante faz surgir, no âmbito do Direito Penal, o fenômeno dos microssistemas jurídicos, especialmente diante de uma clara – e arriscada – tendência de descodificação a partir de leis especiais que adotam princípios e institutos próprios, distintos daqueles pertencentes ao Direito Penal codificado (MELLO, 2004, p. 9-10).
Nesse aspecto, não é incomum observar a flexibilização de garantias penais na instituição de normas relacionadas a crimes específicos – na direção do criticado Direito Penal do Inimigo –, como ocorre, por exemplo, na Lei do Crime Organizado. Da mesma forma, não é difícil encontrar leis que aumentam a reprimenda sancionatória com o escopo de responder a anseios sociais – no sentido de um Direito Penal de Emergência –, a exemplo do que acontece com a Lei de Trânsito, o Estatuto do Idoso e, até mesmo, com a Lei de Crimes Hediondos, que vem sofrendo constantes atualizações.
Entretanto, em qualquer um desses microssistemas jurídicos, não se pode abrir mão dos princípios constitucionais penais, que caracterizam uma verdadeira conquista do cidadão diante da imperiosa necessidade de estabelecer limites ao ius puniendi, a fim de que restem garantidas a dignidade e liberdade de todos os cidadãos no âmbito de um Estado Democrático de Direito.
Afinal, não é demais lembrar que o Estado, ao exercer o seu poder de estabelecer os delitos e as penas, não pode fazê-lo de modo absoluto, devendo “obedecer a uma série de princípios que salvaguardem as garantias mínimas que todo cidadão deve possuir para viver em uma sociedade democrática e respeitosa com os Direitos e obrigações de todos”. O motivo é simples: “a identificação de um Estado como social e democrático de Direito constitui um bastião garantista para o cidadão em suas relações sociais” (BUSATO, 2015, p. 143-144).
Com efeito, os pilares da legalidade, da intervenção mínima e da culpabilidade precisam caminhar conjuntamente com qualquer legislação de natureza penal, exigindo, por uma lado, a existência de uma lei prévia, clara e estrita para a punição – assim como o respeito ao caráter fragmentário do Direito Penal e ao imperativo de presença da responsabilidade subjetiva – e determinando, por outro lado, a retroatividade de leis posteriores mais benéficas, por representarem uma nova ideologia do Estado, que precisa ser respeitada frente às violações a direitos fundamentais decorrentes do poder punitivo.
Se, aparentemente, a necessidade de observância desses princípios basilares pelas leis penais extravagantes parece encontrar amplo reconhecimento doutrinário e jurisprudencial (ao menos utopicamente), o respeito aos mesmos princípios em microssistemas mistos vem sendo alvo de desnecessárias discussões.
Como cediço, o Direito Administrativo Sancionador aparece como um sistema jurídico misto, que soma características do Direito Administrativo e do Direito Penal, com vistas a conceder uma maior reprimenda estatal para infrações administrativas mais graves, que merecem sanções mais severas do que aquelas oriundas do sistema puramente administrativo. Até mesmo por esse motivo, muitos doutrinadores defendem que, diante do risco decorrente da expansão do Direito Penal Simbólico, deveria ocorrer uma redução da tutela aos principais bens jurídicos individuais e uma consequente ampliação do Direito Administrativo Sancionador para o alcance de bens jurídicos supraindividuais e coletivos. Pela mesma razão, há quem chame esse sistema misto de Direito Penal de Intervenção, ou simplesmente de Direito de Intervenção (Intervenktionsrecht), como efetuado pelo respeitado professor Wifried Hassemer.
Nesse âmbito, chama a atenção, por exemplo, a recente discussão sobre a aplicabilidade – ou não – da nova Lei de Improbidade Administrativa (LIA) às ações judiciais em curso. Por um lado, é vasta a jurisprudência que defende a retroatividade da lei mais benéfica (que suprime condutas ímprobas, exige a presença de dolo específico, afasta as condutas culposas e institui prazos prescricionais a serem respeitados pelo Estado). Mas, por outro, ainda se percebe a presença de julgadores mais legalistas, que se negam a fazer os ajustes devidos nas ações em curso e permitem o trâmite de processos infindáveis que, a marcha lenta, visam apurar condutas não mais reprimidas pelo legislador.
A realidade é que “doutrina e jurisprudência majoritárias consideram que normas de Direito Administrativo Sancionador possuem similitude com normas penais; e, quando mais benéficas, devem retroagir em benefício do réu (TJ/SP - Agravo de Instrumento nº 2146747-50.2021.8.26.0000, 16/12/2021, Desembargador Relator TORRES DE CARVALHO).
Todavia, apesar do acerto dessa linha de decisões, o Supremo Tribunal Federal acabou atrasando uma discussão – cuja conclusão parece óbvia – ao reconhecer Repercussão Geral ao Tema 1.199 e submeter a julgamento colegiado a questão relativa à (ir)retroatividade da nova LIA. Por enquanto, cabe aos operadores do Direito explicar a regra normativa e, pacientemente, aguardar, entre posicionamentos contraditórios dos julgadores, uma decisão justa, até que venha a ser apreciada pela Corte Suprema a questão de repercussão geral, a qual, em que pese resistência de alguns julgadores (que preferem chamar a questão de “prematura”), nos parece que já foi suficientemente respondida pelas regras normativas e pelos princípios constitucionais (CF, art. 5º, XL).
Referências
BRASIL. Lei nº 14.429 (Altera a Lei de Improbidade Administrativa). Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 25 out. 2021. Disponível em <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 06 abr. 2022.
BUSATO, Paulo César. Fundamentos para um Direito Penal Democrático. 5.ed. Curitiba: Juruá, 2015.
HASSEMER, Winfried. Direito Penal: fundamentos, estrutura, política. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008.
HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do Direito Penal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005.
MELLO, Sebástian Borges de Albuquerque. Direito Penal: sistemas, códigos e microssistemas. Curitiba: Juruá, 2004.
Como citar esse texto : ALBAN, Rafaela. Microssistemas, Direito Penal e Direito Administrativo Sancionador. Boletim Revista do Instituto Baiano de Direito Processual Penal, a.5, n.20,
p.27-28. Salvador: IBADPP, 2022.
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