Os novos crimes licitatórios e a novatio legis in pejus

Texto de Opinião

No dia 01 de abril desse ano, foi publicada a Lei nº 14.133, que, revogando a Lei nº 8.666/93, passou a dispor sobre Licitações e Contratos Administrativos. Dentre as consequências jurídico-penais do novo diploma, com vacatio legis de dois anos, encontra-se a imediata revogação dos arts. 89 a 108 da Lei nº 8.666/93 (art. 193, I) e a inclusão do Capítulo II-B, no Título XI da Parte Especial do Código Penal, para previsão dos “Crimes em Licitações e Contratos Administrativos”.

Os dispositivos penais da nova lei (arts. 337-E e 337-O do Código Penal) – que, por disposição expressa, também se aplicam aos contratos celebrados com empresa pública, sociedade de economia mista e subsidiárias –, remontam parcialmente tipos penais preteritamente previstos pela antiga Lei de Licitações (8.666/93), mas acrescentam novas condutas, tornam os dispositivos mais amplos e, salvo no caso dos arts. 337-J e 337-N (antigos arts. 94 e 98), aumentam as penas abstratamente previstas.

Numa perspectiva mais geral, a Lei nº 14.133/21 excluiu o teto previsto na Lei nº 8.666/93 para a multa cominada aos crimes hoje expressos no Código Penal. Antes, de forma especial, a pena de multa deveria ser calculada em porcentagem sobre o "valor da vantagem efetivamente obtida ou potencialmente auferível pelo agente", respeitando o limite máximo de 5% do valor do contrato licitado ou celebrado com dispensa ou inexigibilidade de licitação. Com o advento da nova lei, passa-se a seguir a norma geral do Código Penal, estipulada em dias-multa, com a ressalva apenas de que o valor da pena de multa não pode ser inferior a "2% do valor do contrato licitado ou celebrado com contratação direta".

Mas, no âmbito penal, as principais mudanças estão nos tipos penais incriminadores, que ganharam nome, novos contornos, maiores penas e uma justaposição no Código Penal.

O antigo crime do art. 89 da Lei nº 8666/93 passou a estar previsto no art. 337-E do Código Penal (Contratação direta ilegal). Com isso, a pena, anteriormente de três a cinco anos de detenção, agora é de quatro a oito anos de reclusão. Além disso, apesar de não ser incorporado o parágrafo que punia aquele indivíduo "que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o poder público", tal situação encontra-se abrangida pelo caput do dispositivo, que, valendo-se dos núcleos “admitir, possibilitar ou dar causa” permite um maior alcance do dispositivo.

No crime de Frustração do Caráter Competitivo de Licitação (art. 337-F do Código Penal e antigo art. 90 da Lei n. 8666/93), foi procedida a supressão da forma de execução vinculada (mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente), associada a novo acréscimo de pena: quatro a oito anos de reclusão, em lugar de dois a quatro anos de detenção.

Houve, em ambos os casos, um aumento da pena abstrata dos tipos penais, assim como ocorreu com os crimes de Patrocínio de Contratação Indevida (art. 337-G, antigo art. 91), Modificação ou Pagamento Irregular em Contrato Administrativo (art. 337-H, antigo art. 92), Perturbação de Processo Licitatório (art. 337-I, antigo art. 93), Afastamento de Licitante (art. 337-K, antigo art. 95) e de Contratação Inidônea (art. 337-M, antigo art. 97).

A quarta alteração penal relevante foi a do artigo 337-L do Código Penal (antigo art. 96), que prevê o crime de Fraude em Licitação ou Contrato. No caso em apreço, além do aumento da pena base (de três a seis anos de detenção para quatro a oito anos de reclusão), foram previstas novas formas de execução:  1) entrega de mercadoria ou prestação de serviços com qualidade ou em quantidade diversas das previstas no edital ou nos instrumentos contratuais; 2) fornecimento, como verdadeira ou perfeita, de mercadoria falsificada, deteriorada, inservível para consumo ou com prazo de validade vencido; 3) entrega de uma mercadoria por outra; 4) alteração da substância, qualidade ou quantidade da mercadoria ou produto fornecido; ou 5) qualquer meio fraudulento que torne injustamente mais onerosa para a Administração a proposta ou execução do contrato.

As mudanças no crime de Fraude em Licitação ou Contrato pautaram-se em ampliar o alcance da tipificação das condutas. Isso porque, existia na Lei nº 8.666/93 uma exigência de que a conduta criminosa fosse associada à “elevação arbitrária dos preços”, o que não foi transportado para o Código Penal. Ademais, a nova redação do caput retira a restrição semântica prévia referente ao propósito do certame, ao não mais exigir que a conduta criminosa se refira a uma fraude de licitação “instaurada para aquisição ou compra de bens ou mercadorias", bastando agora qualquer ato de "fraudar licitação".

Certamente, uma das intenções legislativas do agravamento das penas base das antigas condutas criminosas foi a de impedir a celebração do Acordo de Não Persecução Penal, introduzido pela Lei nº 13.964/19, já que o artigo 28-A do Código de Processo Penal expressamente exige, para tal finalidade, que a infração seja punida com pena mínima inferior a quatro anos.

De modo análogo, buscou-se a possibilidade de interceptação de comunicações telefônicas a partir de investigações com foco único e exclusivo em crimes licitatórios, o que era vedado anteriormente em virtude da previsão de pena de detenção.

Outra alteração importante refere-se a uma inovação penal. Sem correspondência na lei anterior, foi introduzido o crime de "Omissão grave de dado ou de informação por projetista" no artigo 337-O do Código Penal, punido com multa e seis meses a três anos de reclusão. O parágrafo segundo prevê ainda que se a infração for praticada "com o fim de obter benefício, direto ou indireto, próprio ou de outrem", a pena aplica-se em dobro.

O objetivo da criação desse novo tipo penal é coibir a omissão, modificação ou entrega dolosa, à Administração, de informações relevantes ao processo licitatório que estejam em dissonância com a realidade no que se refere a levantamento cadastral ou condição de contorno, o que exclui adaptações que venham a se mostrar necessárias por outras circunstâncias. Para evitar uma possível ambiguidade na interpretação da “condição de contorno”, a própria lei encarregou-se de sua descrição no parágrafo primeiro: “as informações e os levantamentos suficientes e necessários para a definição da solução de projeto e dos respectivos preços pelo licitante, incluídos sondagens, topografia, estudos de demanda, condições ambientais e demais elementos ambientais impactantes, considerados requisitos mínimos ou obrigatórios em normas técnicas que orientam a elaboração de projetos”.

A questão a se esclarecer é que, no âmbito do Direito Penal, a previsão da Lei nº 14.133/21 referente aos crimes licitatórios representa uma Novatio Legis in Pejus – e, no caso no art. 337-O, uma Novatio Incriminadora. Isso significa que a nova lei apenas irá incidir aos fatos cometidos a partir da sua publicação (01/04/2021) e que os artigos 89 a 99 da Lei nº 8666/93, nada obstante revogados, possuirão ultra-atividade – isto é, continuarão “vigentes” – para todo e qualquer fato cometido sob a sua égide, na medida em que representem um benefício para os investigados ou réus. Afinal, não se pode olvidar que, no Direito Penal, é vedada a retroatividade da lei penal que causa prejuízo ao réu, sob pena de grave violação ao arcabouço constitucional que permeia a coação promovida pela possibilidade de aplicação de uma pena privativa de liberdade ao cidadão.

 

Como citar esse texto: ALBAN, Rafaela. Os novos Crimes Licitatórios e a Novatio Legis in Pejus. Disponível em: <www.rafaelaalban.adv.br>. Publicado em: 05 ago. 2021.