Quando uma Constituição Federal dispõe que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente” (art. 5º, LXI) e que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art. 5º, LVII), é natural que o tema “prisão preventiva” seja alvo de discussões e opiniões divergentes, especialmente quando inserido num contexto de Direito Comparado e numa realidade prisional reconhecida como “um estado de coisas inconstitucional” pelo Supremo Tribunal Federal (ADPF 347).
No Brasil, a prisão preventiva, como a principal forma de prisão provisória – coexistente com a situação de flagrância e a prisão temporária –, poderá ser decretada pela autoridade judicial competente, diante da prática de crimes graves (previstos em amplo rol do art. 313 do CPP), quando houver fumus comissi delicti (prova da materialidade delitiva e indícios suficientes de autoria) e periculum libertatis (necessidade de decretação para garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, assim como diante de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares).
Isso significa, notadamente quando associado às mencionadas disposições constitucionais, que, como medida cautelar, a prisão preventiva deve respeitar os princípios da excepcionalidade (deve ser usada apenas em ultima ratio) e da precariedade ou da provisoriedade (deve ter tempo programado para sua duração, devendo ser substituída ou revogada quando houver modificação na situação fática). Tais princípios, insculpidos no art. 282 do CPP, deverão balizar a decretação e manutenção da prisão preventiva, que não dispõe de prazo legal máximo de duração, com o aparente objetivo de que esteja vinculada à sua efetiva necessidade casuística.
Ocorre que a realidade sempre vem caminhando na contramão das previsões legais e constitucionais, as quais, com aparente intencionalidade, foram estabelecidas de modo a conceder espaço ao subjetivismo e a um almejado bom senso dos operadores do direito.
A existência de um percentual de 33% de presos provisórios nas penitenciárias brasileiras – que vivenciam uma dura realidade de prisões preventivas excessivamente duradouras e desnecessárias – demonstra que, de fato, a discricionariedade não foi bem aplicada.
Recentemente, a Lei n. 13.964/2019 – que ficou conhecida no cenário jurídico e social como a “Lei Anticrime” –, promoveu importantes alterações no âmbito da prisão preventiva, a maioria delas positiva, mas ainda insuficientes para uma efetiva mudança de realidade, especialmente se analisada em conjunto com os claros resquícios de inquisitoriedade do sistema processual penal brasileiro e a aparente vontade de criação de modalidades de execução provisória de penas.
Primeiramente, insta observar que, com a reforma estabelecida pela Lei Anticrime, foi suprida a possibilidade de decretação de prisão preventiva de ofício pelo juiz, mediante alteração da redação original dos artigos 282, §2º e 311, ambos do CPP, que eram incompatíveis com o sistema acusatório. Com essa mudança, foi vedada a decretação de medidas cautelares sem provocação expressa do Ministério Público, do querelante ou, em fase de inquérito, da autoridade policial; bem como, consequentemente, restou proibida uma conversão automática da prisão em flagrante em temporária ou preventiva.
Além disso, com a nova redação do art. 316 do CPP, foi corretamente incluída a possibilidade de revogação de prisão preventiva de ofício pelo juiz, assim como o dever de realizar uma revisão obrigatória da prisão preventiva a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão decretada ilegal.
Isso significa que, embora a lei ainda não tenha fixado o prazo máximo de duração da prisão preventiva – tal como ocorre com a prisão temporária –, impôs o dever de reanálise de seus fundamentos a cada 90 (noventa) dias. Assim, entendendo que a prisão preventiva precisa ser mantida, o magistrado deverá proferir nova decisão reapreciando o mandado prisional, acolhendo os seus fundamentos e acrescentando novos argumentos, quando houver. Não atende à norma, portanto, a mera ratificação da decisão ou afirmação vazia de persistência dos fundamentos anteriores; caso contrário, a inovação legislativa seria completamente inútil.
Aliás, insta acrescentar que, como norma processual penal de natureza híbrida (ou mista), o novo art. 316 do CPP deve incidir sobre as prisões preventivas em curso, em atenção ao princípio da retroatividade da lei mais benéfica.
Outra mudança importante, inaugurada pela Lei Anticrime, é percebida com as previsões normativas quanto à necessidade de fundamentação adequada da decisão de decretação da medida cautelar. Em consonância ao já insculpido no art. 489, parágrafo único, do CPC, as novas redações do art. 312, §2º e do art. 315 do CPP passaram a dispor acerca do imperativo de “indicar concretamente a existência de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada”, afastando, dentre outras, a legalidade de decisões vazias, pautadas em conceitos jurídicos indeterminados ou destoantes com as questões discutidas nos autos.
Em último lugar, verifica-se também que a Lei Anticrime reforçou a impossibilidade de decretar prisões preventivas pautadas em mera gravidade abstrata do delito, tanto ao incluir o “perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado” entre os pressupostos da prisão preventiva (art. 312, CPP); quanto ao estabelecer que “não será admitida a decretação da prisão preventiva com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena ou como decorrência imediata de investigação criminal ou da apresentação ou recebimento de denúncia” (art. 313, §2º, CPP).
Por outro lado, a inserção de hipóteses de prisão preventiva automática e de execução antecipada de penas demonstrou claro retrocesso da novel legislação, o que merece ser revisto. Isso porque, é questionável a constitucionalidade do art. 310, §2º (que impõe ao juiz o dever de denegar a liberdade provisória, com ou sem medidas cautelares, nos casos de prisão em flagrante de “agente reincidente ou que integra organização criminosa armada ou milícia, ou que porta arma de fogo de uso restrito”) e, especialmente, do art. 492 (que estabelece que, ao ser proferida sentença condenatória pelo júri, com uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão, o juiz-presidente deverá determinar a execução provisória das penas, com expedição do mandado de prisão, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos).
A ideia de uma prisão preventiva obrigatória, além de incoerente, é flagrantemente inconstitucional, haja vista que ofende os princípios da presunção de inocência (ao estabelecer uma verdadeira presunção de culpabilidade), isonomia (já que condenações mais graves, por crimes análogos, não incidem em tal exceção) e culpabilidade (afinal, o simples fato do réu sofrer uma condenação mais ou menos grave não o faz mais ou menos culpado). Além disso, estabelece critérios facilmente manipuláveis (inconcebíveis diante do princípio da legalidade penal) e torna a gravidade do crime uma condição suficiente para a decretação e manutenção de prisão preventiva, o que é uma ideia absurda e, numa interpretação sistêmica da própria Lei, contraditória (especialmente com o quanto disposto no novo art. 313, §2º).
De fato, a análise do mesmo instituto (prisão preventiva) no sistema legislativo de outros países da América Latina – países igualmente subdesenvolvidos e que vivenciam similares mazelas sociais – permite enxergar o óbvio: ainda temos muito a evoluir.
No Chile, há tempos já
se falava na necessidade de revisão obrigatória da prisão preventiva a cada dois
meses. No México, a prisão preventiva não pode ultrapassar 02 anos (salvo a
pedido da própria defesa) e, desde a reforma processual de 2008, assim como
ocorre na Argentina – onde o prazo legal é de 01 ano –, a prisão preventiva é normativamente
posicionada como última forma de medida cautelar. Na Colômbia, desde a reforma de 2004, foi procedida a
implantação do juiz de garantias. Além disso, em todos esses países, assim como
na Costa Rica, os pressupostos de decretação da prisão preventiva são mais
limitados e taxativos (a exemplo das ideias de perigo concreto de fuga e de
obstaculização do processo), inexistindo qualquer previsão próxima à nossa amplíssima
causa de “garantia de ordem pública”.
Se os operadores do direito ainda lançam mão de argumentos vazios – amparados em mascarada gravidade em abstrato de delito ou, até mesmo, num encoberto interesse na prisão preventiva como forma de obtenção de uma colaboração premiada – para decretar e manter prisões preventivas desnecessárias e duradouras, o que se nota é que o caminho deve ser mais radical do que o incorporado pela recente reforma. Talvez, a solução seja simplesmente abolir a prisão preventiva (reconhecendo a sua falência) ou, ao menos, estabelecer um prazo máximo razoável para a medida, sob pena de sua conversão numa verdadeira execução antecipada de pena, em afronta aos princípios constitucionais.
Afinal, especialmente nos tempos de pandemia ora vivenciados, enxergamos mais prisões provisórias desnecessárias do que necessárias. Esse é um fato, que ainda vem acompanhado de uma dura realidade de morte de pessoas injustamente mantidas no cárcere e da flagrante seletividade de um sistema que realmente precisa ser repensado.
O grande problema é que, ao que parece, só vai haver evolução quando legisladores e operadores do Direito efetivamente acreditarem que “mais vale arriscar a salvar um culpado do que condenar um inocente”, se humanizarem e enxergarem, de uma vez por todas, que “vidas negras importam”, “vidas pobres importam”, “vidas periféricas importam”, que a vida importa. E a vida é um substantivo que sempre deve ser adjetivado com a palavra dignidade e, na maior medida possível, vir acompanhado de todos os direitos fundamentais constitucionalmente assegurados.
Como citar esse texto: ALBAN, Rafaela. Prisão Preventiva: ainda há muito a evoluir. Disponível em: <www.rafaelaalban.adv.br>. Publicado em: 15 jul. 2020.
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