Desde a constatação dos primeiros sinais do colapso do sistema de saúde brasileiro e da verificação da insuficiência das medidas de isolamento social para conter a propalação do coronavírus, o chamado lockdown – caracterizado como um confinamento emergencial com maior restrição à liberdade de circulação – passou a dividir opiniões, gerou pânico e fez o Conselho Nacional de Justiça editar a Recomendação n. 318, de 07 de maio de 2020, para sugerir a suspensão de prazos processuais durante o período de bloqueio.
De acordo com estudos científicos, a medida, adotada previamente em diversos países que já haviam vivenciado os impactos da pandemia, seria imperativa, especialmente em razão do descumprimento das recomendações administrativas de isolamento social e do relaxamento da população, fatos que imediatamente passaram a refletir no número de infectados pelo coronavírus e tornou o Brasil o segundo epicentro da pandemia mundial.
O bloqueio total foi imediatamente recomendado para todas as cidades que possuíam uma taxa de ocupação de leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTI) superior a 80% (oitenta porcento), situação indicadora da incapacidade do sistema de saúde para lidar com as necessidades dos próximos infectados, e, com isso, foram editados decretos de bloqueio total em diversos municípios, a exemplo de São Luís, Belém e outras nove cidades do Pará, Fortaleza, Niterói, assim como de algumas cidades do Amapá, Tocantins, Amazonas, Paraná, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Norte.
A questão é que a decretação do lockdown ou o risco de sua provável interferência na liberdade de locomoção individual de todos os envolvidos, instaurou um importante questionamento social: a decretação de lockdown é constitucional no caso de não haver uma situação de estado de defesa ou de estado de sítio?
A indagação é justificada por um fato conhecido, que não pode ser ignorado, especialmente no âmbito de um Estado Democrático de Direito: a Constituição Federal só autoriza uma limitação ao direito individual de ir e vir nos casos de prisão (de comprovada legalidade) e em situações de regimes excepcionais (estado de defesa ou estado de sítio), previstos nos seus artigos 136 a 139.
Ocorre que, como tais regimes parecem mais apropriados para situações de violência e comprometimento da ordem pública – e não para casos de crises sanitárias como a vivenciada –, faltam circunstâncias objetivas justificadoras da decretação dessas medidas políticas mais drásticas, apesar de serem prementes, por outro lado, determinadas consequências fáticas a estas originalmente inerentes.
De fato, não estamos diante de um Estado de Exceção, mas vivenciamos um momento de legalidade extraordinária, no qual já foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal a competência dos Estados e Municípios para adotar medidas de restrição de circulação. Isso significa que, não sendo uma hipótese de anomia – é dizer, ausência ou suspensão de leis e direitos –, o lockdown mostra-se como uma medida menos agressiva a direitos fundamentais e, portanto, como uma providência constitucional.
Ora, não podemos jamais olvidar que direitos fundamentais podem ser relativizados, especialmente quando estiverem em conflito com outros direitos de igual natureza. No caso em análise, ao lado da liberdade individual atingida pelo lockdown, há a preservação do direito à vida e à saúde, que, diante desse conflito, certamente precisam preponderar.
Ressalte-se, todavia, que a constitucionalidade do bloqueio total não significa que este poderá ser decretado sem qualquer fundamentação ou de forma associada a eventuais violações a princípios fundamentais. Só há constitucionalidade no lockdown se a medida, amparada em dados científicos, for devidamente fundamentada e proporcional, sob pena de caracterizar verdadeiro abuso de poder.
Com efeito, as penalidades administrativas associadas ao eventual descumprimento do lockdown precisam ser equivalentes à violação causada, ou seja, proporcionais às multas já estipuladas em casos de violações correspondentes, a exemplo daquelas vigentes para situações de infrações de trânsito.
Não é demais reafirmar que a estipulação de penalidades administrativas exorbitantes, assim como a utilização do poder coercitivo do Direito Penal como mecanismo desesperado de controle social, apenas desvirtua princípios fundamentais, causa insegurança social e deslegitima os próprios atos administrativos, que estarão sempre sujeitos à necessidade de sua revogação e à revisão judicial, a exemplo do que já ocorreu com a Portaria Interministerial n. 5, de 17/03/2020, que fazia expressa – e equivocada – menção aos artigos 268 e 330 do Código Penal.
Como citar esse texto: ALBAN, Rafaela. Direito Penal, Estado de calamidade pública e lockdown. Disponível em: <www.rafaelaalban.adv.br>. Publicado em: 04 jun. 2020.
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