Direito Penal e COVID-19

Reflexões críticas sobre o uso do Direito Penal diante da pandemia causada pelo novo coronavírus

1 INTRODUÇÃO

 

Não há dúvida de que o cenário de “balbúrdia normativa”, há muito tempo vivenciado pelo Direito Penal brasileiro, dificulta a adequada compreensão do que é proibido e do que é permitido, especialmente num contexto de crise, em que, definitivamente, não há convergência de pronunciamentos e posturas entre as diversas unidades federativas.

A questão é que a situação de pandemia decorrente da propalação do coronavírus – que diariamente multiplica seu número de vítimas, divide opiniões populares e impõe a adoção de medidas de urgência pelas chefias executivas – fez ressurgir, nas discussões jurídicas, tipos penais até então quase esquecidos.

Com certeza, o arcabouço fático foi um grande estímulo para os debates, pois, constantemente, foram veiculadas notícias atípicas, a exemplo da situação do senhor que fugiu do hospital depois de negar-se a realizar exames e cumprir isolamento decorrente de diagnóstico positivo da sua esposa, da senhora sadia que foi presa no interior de São Paulo após descumprir isolamento social e andar na praça, do rico empresário contaminado que viajou no seu jato particular para participar de festa no interior da Bahia e, até mesmo, do Presidente da República que, mesmo diante da sua condição de caso suspeito de contaminação, estimulou manifestações populares e cumprimentou pessoas sem a adoção de qualquer das medidas preventivas orientadas pelo Ministério da Saúde.

Para completar, nos últimos meses, além de pronunciamentos e pedidos de demissão no mínimo inusitados, a população também se deparou com afirmações desesperadas e coativas de autoridades públicas no sentido de que pessoas que descumprissem recomendações de “isolamento” ou “quarentena” (Lei n. 13.979/20), de suspensão de atividades consideradas não essenciais ou, uma vez infectadas pelo COVID-19, colocassem outras em situação de perigo, poderiam ser “presas”.

De fato, diante de tantas “ameaças” de utilização deturpada de dispositivos penais e da existência das chamadas “normas penais em branco”, carregadas de elementos normativos, forçoso esclarecer a ratio essendi das normas penais aprioristicamente “aplicáveis” às situações vivenciadas, com o especial escopo de chamar atenção para a existência de uma verdadeira inversão de valores e da utilização inadequada no setor jurídico-penal, no afã de solucionar problemas de política pública.

 

2 TIPOS PENAIS APLICÁVEIS A PRIORI: BREVE ANÁLISE ACERCA DA RATIO ESSENDI E ABRANGÊNCIA DAS NORMAS DISCUTIDAS NA SITUAÇÃO DA PANDEMIA.

 

No Código Penal, há a previsão de alguns tipos penais incriminadores que, numa análise superficial, poderiam se subsumir aos casos associados às situações decorrentes da pandemia pelo coronavírus, especialmente aqueles arrolados nos capítulos dos crimes contra a periclitação da vida e da saúde e dos crimes contra a saúde pública, que, até então, por razões óbvias, não vinha contando com tanta atenção dos estudiosos do Direito Penal.

O primeiro tipo penal a ser analisado é o do art. 131 do Código Penal, que assim estabelece:

Perigo de contágio de moléstia grave

Art. 131 - Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio:

Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.

Nesse caso, como se depreende da literalidade do dispositivo legal, estar-se diante de um crime próprio, que apenas pode ser praticado diretamente por uma pessoa contaminada, e que exige a presença de um elemento normativo, qual seja: a “moléstia grave”.

Segundo definição apresentada por Paulo Busato, moléstias graves podem ser entendidas como aquelas que “produzirem importantes perturbações da saúde” (BUSATO, 2017, p.155). Desse modo, alguns critérios poderiam ser utilizados para a identificação de uma “moléstia grave”: “a inexistência de cura, a possibilidade de sequelas ou o alto risco de morte” (MONTENEGRO; VIANA, 2020).

Logo, a questão fulcral para a análise de incidência do tipo penal supratranscrito é determinar se a COVID-19 poderia ser considerada como uma “moléstia grave” para preenchimento do elemento normativo exigido pelo art. 131 do Código Penal. Nesse sentido, a pergunta a ser feita é: deve-se observar a facilidade de contaminação, o grau de letalidade do vírus ou a incapacidade do setor de saúde pública de lidar com essa doença?

Diante dessa reflexão, necessária para o preenchimento do elemento normativo do art. 131 do Código Penal e, portanto, para a consideração da existência – ou não – de uma conduta formalmente típica, parece mais razoável afirmar que a mera facilidade de contágio e a incapacidade do setor público de lidar com a doença (diante do anunciado colapso do sistema de saúde) não culminam, tecnicamente, na inclusão da COVID-19 como uma “moléstia grave” para fins de incidência daquele dispositivo penal.

Isso porque, deve ser considerado o restrito grupo de risco e a existência de uma taxa de letalidade relativamente baixa, que, atualmente no Brasil, é de quase 6,8%, mesmo diante de uma realidade de realização restrita de testes para os casos mais graves, o que, logicamente, gera uma falsa percepção de majoração do grau de letalidade da doença, calculado na relação “casos confirmados x óbitos”.

Em verdade, o que se observa dos casos concretos é que o risco de vida nos infectados pela COVID-19 é gerado principalmente pela incapacidade operacional e superlotação dos centros de saúde e não pelo grau de letalidade específico da doença, o que, por si só, afasta a possibilidade de incidência do dispositivo do art. 131 do Código Penal, até mesmo porque, diante da ausência de estudos seguros relacionados às implicações da doença, a dúvida deve ser utilizada a favor do réu (princípio do in dubio pro reo).

Aliás, a especificidade do elemento normativo do crime de “perigo de contágio de moléstia grave” faz com que operadores do direito desviem seus olhares para a infração penal, expressamente subsidiária, insculpida no art. 132 do mesmo diploma legal, que, de modo mais genérico, assim dispõe:

Perigo para a vida ou saúde de outrem

Art. 132 - Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente:

Pena - detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave.

Parágrafo único. A pena é aumentada de um sexto a um terço se a exposição da vida ou da saúde de outrem a perigo decorre do transporte de pessoas para a prestação de serviços em estabelecimentos de qualquer natureza, em desacordo com as normas legais.

No caso desse segundo tipo penal, apesar de não ser necessária a existência de uma qualidade especial do sujeito ativo, a sua condição de crime contra a vida ou saúde da pessoa – que o difere de um crime de perigo comum –, torna exigível a presença de uma pessoa determinada no polo passivo, de modo que simples condutas de “sair de casa”, de “desrespeitar a quarentena” ou de “transitar em via pública”, em afronta a uma recomendação administrativa, não são capazes de ensejar a incidência dessa infração penal.

A contrário senso, poderia ser essa a tipificação adequada para situações em que pessoas infectadas pelo COVID-19, deliberadamente, passam saliva ou excrementos em determinado local com o objetivo de transmitir a doença para pessoa(s) determinada(s), caso não existisse a possibilidade de incidência dos “crimes mais grave” de homicídio (art. 121) e de lesão corporal (art. 129), que vêm a exortar a aplicação do princípio da subsidiariedade na solução desses conflitos aparentes de normas.

De todo modo, insta destacar que, em definitivo, não há como determinar indistintamente – e sem nenhum elemento fático acessório – a prisão de transeuntes descumpridores da recomendação de isolamento social por conta da disposição legal do art. 132.

Ademais, o mesmo se pode afirmar no que tange ao constantemente discutido art. 267 do Código Penal, que estabelece o crime de “epidemia” nos termos que seguem:

Epidemia

Art. 267 - Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos:

Pena - reclusão, de dez a quinze anos.

§1º - Se do fato resulta morte, a pena é aplicada em dobro.

§2º - No caso de culpa, a pena é de detenção, de um a dois anos, ou, se resulta morte, de dois a quatro anos.

Nesse aspecto, o que se nota é que a ratio essendi da norma acima transcrita é evitar a causa da epidemia e não a sua propagação secundária. Isso significa que “o sujeito tem que, em razão de uma conduta específica, poder ser responsabilizado pelo desenvolvimento da própria epidemia” (MONTENEGRO; VIANA, 2020).

Ora, como é de conhecimento público, no caso do COVID-19, a causa é preexistente ao problema de saúde pública experimentado no Brasil, já que se trata de uma “epidemia importada”, de uma causa exógena que, por circunstâncias claramente involuntárias, posteriormente assumiu uma condição de transmissão comunitária num número significativo de cidades brasileiras.

Noutras palavras, se a epidemia já é uma realidade nacional, não se pode ressignificar o núcleo do tipo para justificar a ocorrência de uma subsunção “fato-norma”, pois o tipo penal do art. 267 do Código Penal apenas poderia incidir se a causa da epidemia fosse a ação do agente (elemento primário) e qualquer interpretação mais ampla, para atingir ações secundárias, ampliando o escopo de proibição do tipo, representaria um desrespeito à vedação legal da utilização da analogia in malam partem.

No que tange ao crime do art. 268 do Código Penal, bastante utilizado nas discussões atuais, a conclusão é, de fato, um pouco diferente. Nesse caso, veja-se o que prevê o legislador:

Infração de medida sanitária preventiva

Art. 268 - Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:

Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa.

Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.

Como já é possível perceber, numa análise perfunctória, esse é um dos dispositivos penais que, aparentemente, mais se aproxima ao cenário atual, em que autoridades públicas, claramente, desejam utilizar o Direito Penal como forma de controle social primário na garantia de cumprimento de recomendações de isolamento social.

Ocorre, todavia, que uma adequada interpretação sistêmica do tipo penal em análise irá permitir uma conclusão em sentido diverso daquele que vem sendo empregado em muitas situações fáticas, uma vez que, mesmo sendo um crime de perigo abstrato, a conduta de “infringir” apenas poderá recair sobre uma determinação obrigatória e jamais sobre uma mera recomendação.

Concordando com o entendimento aqui apresentado, Leandro Nunes afirma que o crime do art. 268 do Código Penal só incide em caso de descumprimento de imposição legal obrigatória (p.ex. proibição de acesso a shoppings ou parques públicos) e “não em casos de recomendações ou orientações oriundas do poder público e/ou de profissionais de saúde” (p.ex. “ficar em casa”, “sair apenas para compras essenciais”) (NUNES, 2020).

De fato, o que é recomendável não é necessariamente obrigatório. O “ficar em casa” é uma compreensão pessoal, uma forma de enxergar uma recomendação pública, que demonstra uma preocupação individual e voluntária pelo chamado “bem coletivo”. Ou seja, se não há uma determinação obrigatória, não pode haver a incidência do art. 268.

Entendimento similar, no sentido da limitação de alcance do tipo penal, deve ser adotado no caso do último crime a ser avaliado, aquele previsto no capítulo de crimes contra a administração pública, especificamente no art. 330 do Código Penal, nos termos que seguem:

Desobediência

Art. 330 - Desobedecer a ordem legal de funcionário público:

Pena - detenção, de quinze dias a seis meses, e multa.

No caso do crime de desobediência, o que se rechaça é a conduta de “desobedecer” uma “ordem legal”, o que impõe a existência de uma ordem direta e concreta de um agente público para um destinatário específico, afastando-se a incidência típica no caso de ordens genéricas abstratamente dirigidas a todos os cidadãos, por portaria ou medida provisória, diante da situação de calamidade pública decorrente do coronavírus.

Logo, se inexiste crime de “desobediência genérica”, a incidência do art. 330 somente passa a ser possível diante de situações fáticas acessórias à edição de medidas de emergência, assim como ocorre no caso do art. 268 do Código Penal.

Contudo, como, “no contexto de crimes envolvendo a epidemia, todos os casos de desobediência implicam necessariamente a infração prevista pelo art. 268 CP” (MONTENEGRO; VIANA, 2020) e no sistema jurídico-penal há vedação ao bis in idem, a discussão acerca do tipo penal do art. 330 acaba sendo esvaziada pela incidência do princípio da especialidade como forma de solução do conflito aparente de normas.

 

3 A PORTARIA INTERMINISTERIAL N. 05 DE 2020: COMPULSORIEDADE DE MEDIDAS DE EMERGÊNCIA X ALCANCE DO ARTIGO 268 DO CÓDIGO PENAL

 

Com os esclarecimentos jurídicos acima delineados, verifica-se que, em que pese todo o esforço coativo diante da “balbúrdia normativa” do Direito Penal brasileiro, o único tipo penal que, numa visão estritamente legalista, poderia vir a ser aplicado naquelas situações decorrentes do descumprimento de medidas de emergência de combate ao coronavírus, constantemente veiculadas pela imprensa, seria aquele que descreve o crime de “infração de medida sanitária preventiva” (art. 268 do Código Penal).

Não é por acaso, portanto, que, mesmo antes da publicação do Decreto de Calamidade Pública (Decreto n. 06, de 20 de março de 2020) e fazendo menção desnecessária ao art. 330 do Código Penal, foi editada a Portaria Interministerial n° 05, de 17 de março de 2020, firmada pelos Ministros da Justiça e da Saúde, por meio da qual, “considerando que o descumprimento das medidas impostas pelos órgãos públicos com o escopo de evitar a disseminação do coronavírus (COVID-19) podem inserir o agente na prática dos crimes previstos nos artigos 268 e 330” do Código Penal, foi decretada a “compulsoriedade das medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional” (art. 1º).

Desta forma, ficou estabelecido, através de uma Portaria, que:

Art. 4º O descumprimento das medidas previstas no inciso I e nas alíneas “a”, “b” e “e” do inciso III do caput do art. 3º da Lei nº 13.979, de 2020, poderá sujeitar os infratores às sanções penais previstas nos art. 268 e art. 330 do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, se o fato não constituir crime mais grave.

§1º Nas hipóteses de isolamento, para configuração do descumprimento de que trata o caput, há necessidade de comunicação prévia à pessoa afetada sobre a compulsoriedade da medida, nos termos do § 7º do art. 3º da Portaria nº 356/GM/MS, de 11 de março de 2020.

§2º Para as hipóteses previstas nas alíneas “a”, “b” e “e” do inciso III do caput do art. 3º da Lei nº 13.979, de 2020, a compulsoriedade das medidas depende, nos termos do art. 6º da Portaria nº 356/GM/MS, de 2020, de indicação médica ou de profissional de saúde.

Art. 5º O descumprimento da medida de quarentena, prevista no inciso II do caput do art. 3º da Lei nº 13.979, de 2020, poderá sujeitar os infratores às sanções penais previstas nos arts. 268 e 330 do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, se o fato não constituir crime mais grave.

Como se observa, a “criação dos crimes relacionados ao combate à referida doença não é derivada do mencionado ato normativo, e sim da lei penal, diante do princípio da legalidade insculpido no artigo 5º, XXXIX, da Constituição Federal” (NUNES, 2020). Entretanto, é necessário examinar a (in)constitucionalidade do ato normativo e o alcance dos dispositivos penais mencionados diante dos casos concretos já vivenciados, já que algumas questões precisam ser respondidas, até mesmo na prevenção de abusos: a) quais medidas foram consideradas compulsórias; b) quais as situações fáticas que efetivamente são alcançadas pelo mandado proibitivo; c) quais direitos individuais podem realmente ser suprimidos pela determinação legal diante do cenário político atual; d) se o Direito Penal seria o mecanismo adequado para esse controle social primário.

Numa leitura conjunta da Lei n. 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, e da Portaria Interministerial n° 05, de 17 de março de 2020, observa-se que as medidas de emergência que, uma vez descumpridas, poderiam representar a prática de crimes, são aquelas em destaque no já alterado art. 3º da mencionada lei:

Art. 3º. Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas:

I - isolamento;

II - quarentena;

III - determinação de realização compulsória de:

a) exames médicos;

b) testes laboratoriais;

c) coleta de amostras clínicas;

d) vacinação e outras medidas profiláticas; ou

e) tratamentos médicos específicos;

IV - estudo ou investigação epidemiológica;

V - exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver;

VI- restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou aeroportos de:

a) entrada e saída do País; e

b) locomoção interestadual e intermunicipal;

VII - requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa; e

VIII - autorização excepcional e temporária para a importação de produtos sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa, desde que:

a) registrados por autoridade sanitária estrangeira; e

b) previstos em ato do Ministério da Saúde.

Isso significa que, nos termos das leis e atos normativos federais vigentes, inclusive da Portaria n. 356 do Ministério da Saúde, são consideradas determinações legais (e não meras recomendações) no combate ao coronavírus: a) isolamento: separação de pessoas doentes ou contaminadas, assim como de objetos e meios de transporte afetados, com prescrição médica ou recomendação do agente de vigilância epidemiológica; b) quarentena: restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, assim como de objetos e meios de transporte suspeitos, o que exige ato administrativo formal e devidamente motivado; c) submissão a exames médicos, testes laboratoriais e tratamentos médicos, “com indicação médica ou de profissional de saúde”.

Com efeito, é possível notar que, segundo os diplomas normativos analisados, apenas caracteriza determinação legal no caso do COVID-19 – e mesmo assim de forma condicionada – o isolamento absoluto do infectado, a restrição da liberdade de locomoção de pessoas suspeitas e a imposição de exames, testes e tratamentos por médico ou profissional de saúde competente.

No que tange às pessoas não infectadas, não suspeitas e que não apresentam sintomas decorrentes de uma possível infecção por coronavírus, a situação é um pouco mais complexa, porque o problema preexistente do “caos normativo” é agravado pelo “discurso político descoordenado” entre as diferentes unidades federativas, em nível federal, estadual, distrital e municipal.

Isso significa que, especialmente para aqueles não atingidos pela determinação legal federal – ou seja, para a grande maioria da população –, numa interpretação literal e imediatista, a orientação acabaria variando de acordo com a unidade federativa em que a pessoa se encontra, gerando uma compreensível insegurança quanto ao real alcance dos tipos penais aprioristicamente aplicáveis e indicados na Portaria Interministerial.

Nesse sentido, precisam ser esclarecidas duas questões simples que são consideradas essenciais: a) só há “infração de medida sanitária preventiva” (art. 268) se houver uma “determinação obrigatória”; b) só haveria crime de “desobediência” (art. 330) – cuja própria incidência está prejudicada nas situações da epidemia pela existência da norma anteriormente indicada – se fosse solicitado diretamente para pessoa determinada o cumprimento de uma “ordem legal” que viesse a ser desobedecida.

Com isso, verifica-se a existência de dois elementos normativos que, em razão de um colapso tão grave quanto o da saúde pública – o “colapso político” –, estão sendo absurdamente preenchidos de forma desigual dentro das diversas unidades federativas, sem qualquer atendimento aos ditames constitucionais e às diretrizes fundamentais do sistema jurídico-penal.

Explique-se: os tipos penais dos artigos 268 e 330 do Código Penal, como normas penais em branco, atribuem a adequada identificação da conduta proibida a outras normas (“normas complementares”) e, graças a incompreensível dificuldade brasileira de enfretamento uniforme de uma pandemia de caráter global, estão tendo uma moldura proibitiva diferente a depender da situação vivenciada em cada local.

Entretanto, na contramão de todo essa falta de coordenação, em razão do princípio da legalidade (art. 5º, inciso XXXIX, da CF e art. 1º do CP), especialmente do viés da taxatividade, é necessário chamar atenção que a afirmação de constitucionalidade de normas penais em branco está sujeita a existência de uma lei federal que permita a identificação da conduta proibida, haja vista que, como por demais sabido, condutas criminosas devem estar previamente definidas em lei.

Consequentemente, parece razoável afirmar que, independentemente de erro/acerto ou da suficiência/insuficiência das decisões políticas e legislativas do âmbito nacional, com relação à pandemia do coronavírus, só há “determinação obrigatória”, capaz de justificar a incidência do crime do artigo 268 do Código Penal, nos casos associados às medidas de emergência insculpidas na Lei n. 13.979/2020, em conjunto com a Portaria nº 356/2020 e Portaria Interministerial n° 05/2020. Logo, a aplicabilidade desse tipo penal está restrita aos casos de pessoas infectadas ou suspeitas, em que estejam preenchidas as condicionantes impostas pelas portarias ministeriais.

Em excelente explanação sobre o tema, assim sintetizam Lucas Montenegro e Eduardo Viana:

Com essa cascata de normas, o cidadão fica sabendo a conduta passível de punição: ele é obrigado a ficar em casa em isolamento, porque a prescrição médica (norma i) se baseia na Portaria nº 356 (norma ii), que regula a medida de isolamento definida na Lei nº 13.979 (norma iii), que, segundo a Portaria Interministerial nº 5 (norma iv), seria uma determinação do poder público destinada a impedir a propagação de doença contagiosa e, portanto, satisfaz o tipo penal do art. 268 CP (norma v).

Com isso, chega-se a mais uma conclusão importante: no contexto do COVID-19, não pode haver crime de "infração de medida sanitária preventiva" (art. 268 do Código Penal) praticado pelo indivíduo sadio e não suspeito de contaminação.

Além disso, diante dos absurdos veiculados na mídia, não é demais registrar que o cenário político atual – de reconhecimento de estado de “calamidade pública” e recomendações estaduais de “isolamento social” horizontal – não se confunde com uma hipotética situação de decretação de “estado de sítio”, que, aliás, seria complemente incompatível com a própria postura de negação adotada pelo governo federal.

O estado de sítio é o instrumento que poderia ser lançado pelo Presidente da República, na condição de Chefe do Executivo, para, excepcional e temporariamente, diante da situação grave comoção pública de repercussão nacional, estabelecer a “obrigação de permanência em localidade determinada” (art. 137 da Constituição Federal), transformando a mera recomendação dos governadores numa determinação obrigatória.

Por isso, é indiscutível que, no cenário político atual, o direito constitucional de ir e vir do cidadão – a chamada liberdade de locomoção – não pode ser suprimido, especialmente através de Portarias e Medidas Provisórias. Isso não significa que não pode haver limitação associada a acessos públicos (a parques, shoppings, etc.), mas o “não ficar em casa”, o “andar na rua”, o “dirigir sem máscara”, claramente, não podem ser a razão para realizar ou decretar a prisão do cidadão sadio e não suspeito de contaminação.

Afirma-se, portanto, que, na forma como o sistema está estruturado hoje, são irresponsáveis e infundadas todas as declarações políticas no sentido de que “pessoas que estão na rua serão presas”, caracterizando verdadeiro abuso de poder a efetivação de atos dessa natureza por agentes públicos, até mesmo porque o Direito Penal sequer parece ser o mecanismo adequado para esse tipo de controle social.

Contudo, lamentavelmente, em face de tantas incertezas, outra espécie de “calamidade” foi realçada na crise atual: balbúrdia normativa, discursos políticos desconexos e atos administrativos inconsequentes vêm se mostrando tão graves quanto o problema de saúde pública atravessado pelos cidadãos e ainda mais preocupantes do que o próprio vírus.

 

4 DIREITO PENAL DE ULTIMA RATIO COMO FORMA PRIMÁRIA DE CONTROLE SOCIAL?

 

É inquestionável que estamos vivenciando uma crise de saúde pública e, independentemente de qualquer ideologia política, conhecimentos científicos já demonstraram que a postura adequada é de isolamento social para “achatar a curva de casos”, a fim de que o sistema de saúde consiga enfrentar o problema.

Entretanto, o que se deve questionar é se o Direito Penal pode ser equiparado a outros tipos de controles sociais para administrar a crise. É dizer, deve ser feita uma pergunta simples: é possível, diante de uma reconhecida situação de calamidade pública, colocar o Direito Penal na mesma esfera de outros controles sociais e não na esfera subsidiária inerente ao seu status de ultima ratio?

Como cediço, dentre os princípios de um Direito Penal democrático, está o princípio da intervenção mínima, que se ampara no art. 5º, §2º, da Constituição Federal e no art. 8º da Declaração Universal de Direitos Humanos. Não é demais lembrar que a incidência do princípio da intervenção mínima indica que o Direito Penal só deve intervir na medida do que for estritamente necessário, já que a preocupação não está voltada para a busca da “máxima eficácia possível”, mas sim da “mínima intervenção imprescindível”.

Como desdobramentos do princípio da intervenção mínima, impõe-se ao Direito Penal um caráter fragmentário (só deve se preocupar com a proteção dos bens jurídicos mais importantes e necessários à vida social) e subsidiário (só deve intervir quando os demais ramos do direito, comprovadamente, não forem capazes de proteger aqueles bens jurídicos de maior importância). Principiologicamente, destarte, o Direito Penal somente pode ser concebido como a ultima ratio do controle estatal e deve ser adotada cautela para não transformar a intervenção penal mínima numa intervenção penal máxima.

Em verdade, nada obstante todo o conhecimento sistêmico jurídico-penal, não é uma surpresa que o Direito Penal esteja sendo apresentado como “instrumento de administração da crise epidêmica irrevogavelmente instalada”, especialmente porque, além de ser o mais severo instrumento coercitivo, a “responsabilidade penal – assim como o contágio – pode alcançar a todos indistintamente” (LEITE; GRECO, 2020).

Ocorre que não se pode pedir ou esperar dessa estrutura mais do que ele pode dar. Como bem ressaltaram Alaor Leite e Luís Greco, “a irrupção de epidemias, como a do Covid-19, precipita reações jurídico-penais. Legislador e intérprete são chamados a reagir com imediatez e criatividade”, quando a história demonstra que “a provisoriedade costuma ser má conselheira” e que “a emergência produz, inevitavelmente, instabilidade jurídica” (LEITE; GRECO, 2020).

O recurso ao Direito Penal na situação de emergência não pode indicar o afastamento dos seus critérios interpretativos, dos seus princípios e categorias fundamentais. Exatamente por isso, concorda-se mais uma vez com o que fora afirmado por Alaor Leite e Luís Greco, em recente artigo científico: “o papel que incumbe às proibições de natureza penal deve ser, nesse contexto, relativamente limitado e secundário (LEITE; GRECO, 2020).

Por conseguinte, se a crise é de saúde pública, ela deve ser resolvida no âmbito administrativo, político e sanitário. O Direito Penal não pode ser convocado para o primeiro plano do controle social para resolver uma crise que não lhe pertence, sobrepujando os princípios que lhe são inerentes e abrindo espaço para perigosas exceções.

Aliás, a simples análise do sentido das Medidas Provisórias e demais atos normativos relativos ao COVID-19 – qual seja, evitar o contágio pelo coronavírus – já demonstra a necessidade de incidência do princípio da intervenção mínima. Isso porque, havendo uma situação fática de perigo presumido – e não de perigo concreto –, sequer há como invocar, através de inovações de molduras legislativas, a interferência do Direito Penal, havendo espaço, tão somente, para o Direito Administrativo.

Destarte, a síntese diante da necessidade de “organizar o caos” é clara: eventual insuficiência da situação jurídico-penal atual só pode ser corrigida no enfrentamento de possíveis epidemias futuras e, nesse sistema, só poderá ser invocado o art. 268 do Código Penal para aquelas situações mais graves – não solucionáveis administrativamente – de afronta às medidas de urgência da Lei Federal n. 13.979/2020 por pessoas contaminadas ou suspeitas, o que reduz, teleologicamente, a incidência do referido dispositivo penal para garantir a observância de regras e diretrizes fundamentais.

 

5 CONCLUSÃO

 

Diante de todas as considerações apresentadas, só é possível concluir no sentido de que, realmente, precisamos entender que o Direito Penal é uma estrutura criada para a posteriori, que não foi estruturado para respostas instantâneas e, consequentemente, não pode ser utilizado para administrar uma crise na velocidade de uma pandemia.

Utilizar o Direito Penal como prima ratio, deturpar os seus princípios essenciais e as suas categorias fundamentais, aplicar interpretações extensivas em tipos penais “encontrados” na lei e transformar o Direito Penal num instrumento anunciado de imposição de controle desconexo é apenas uma tentativa de gerar um colapso a mais do que aquele que já vem sendo experimentado na saúde pública.

Precisamos apenas que as pessoas sejam humanas, que os chefes do executivo sejam exemplos e que as recomendações sejam seguidas por uma questão de educação e consciência coletiva. Se há dificuldade no cumprimento das medidas de urgência, o Direito Administrativo está disponível para isso. Não há sentido em lançar mão do Direito Penal para controlar uma pandemia, seja em razão do seu caráter de ultima ratio, seja pela reconhecida incompatibilidade dos seus dispositivos para a situação de emergência. De fato, utilizar o Direito Penal no mesmo patamar de outras espécies de controle, valendo-se de verdadeiras “cascatas normativas”, é deturpar as suas diretrizes essenciais.

Além do mais, não é possível finalizar essa reflexão sem deixar uma pergunta essencial para o leitor: qual o sentido de se valer do Direito Penal num momento em que, na esteira da Recomendação n. 62/2020 do CNJ, as cadeias devem ser esvaziadas? Realmente, nos mais variados aspectos, vivemos diante de um emaranhado de contradições.


Como citar esse texto: ALBAN, Rafaela. Direito Penal e COVID-19: reflexões críticas sobre o uso do Direito Penal diante da pandemia causada pelo novo coronavírus. Disponível em: <www.emporiododireito.com.br>. Publicado em: 11 maio 2020.


Referências

BUSATO, Paulo César. Direito Penal: parte especial, v.2. 3.ed. São Paulo: Atlas, 2017.

______. Fundamentos para um Direito Penal Democrático. 5.ed. São Paulo: Atlas, 2015.

GRECO, Luís. “Princípio da ofensividade" e crimes de perigo abstrato: uma introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol.49, jul-ago, p. 89-147. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

LEITE, Alaor; GRECO, Luís. Direito Penal, Saúde Pública e Epidemia. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/penal-em-foco/direito-penal-saude-publica-e-epidemia.... Acesso em: 24 abr. 2020.

MONTENEGRO, Lucas; VIANA, Eduardo. Coronavírus: um diagnóstico jurídico-penal. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/penal-em-foco/coronavirus-um-diagnostico-juridico-pe.... Acesso em: 24 abr. 2020.

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