A crise política e financeira decorrente da Operação Lava-Jato, associada à necessidade de reconstruir a imagem de empresas brasileiras e de prevenir a incidência de sanções decorrentes de atuações irregulares, mostrou-se como o cenário ideal para introduzir e rapidamente difundir as discussões sobre os programas de compliance no Brasil.
A Lei n. 12.846/2013, conhecida como Lei Anticorrupção, passou a disciplinar a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira, estabelecendo um verdadeiro imperativo de utilização de “mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica” (art. 7º, VIII).
Com isso, os programas de compliance passaram a ser vastamente instalados nas empresas, que, sabidamente preocupadas com a forma de atuação exigida pela legislação nacional, passaram a dispor, em muitos casos, de um setor específico responsável por operar na gestão e mitigação de riscos das atividades daquela organização. Isso porque, como se sabe,
[...] os riscos de compliance diferem de acordo com as empresas, seus mercados de atuação, tipos de produtos, serviços e soluções, partes com quem se relacionam (clientes, fornecedores, sociedade, força de trabalho, acionistas), etc. Desta maneira, convém à organização estabelecer a melhor forma para identificá-los, e, a partir daí engajar-se na sua mitigação[1].
Desta forma, além de ser responsável pelas ações preventivas associadas à implementação de programa de conformidade e controles internos, o setor de compliance passou a ter a importante função de verificar se, efetivamente, estão sendo observados os preceitos legais e normativos da cultura de conformidade implantada na empresa, com o escopo de minimizar riscos decorrentes de condutas pessoais ou organizacionais incoerentes com os princípios, missão, valores e visão da empresa.
O setor compliance não pode ser confundido, portanto, com a auditoria interna da organização, encarregada de reapreciar os atos já realizados e detectar possíveis falhas, previamente ao controle externo, para evitar comprometimento à ética, à sustentabilidade e à integridade da organização. Ou seja, distingue-se das “atividades de controle que objetivam o funcionamento e a segurança de um processo na organização”[2].
Por outro lado, como realizam atividades complementares à auditoria, não são raras as vezes que a área de compliance, realizando auditorias nos contratos firmados, constata a presença de supostos riscos associados às atividades de uma empresa contratada ou à presença de pessoas “visadas” nos quadros societários da determinada organização.
A questão é que a preocupação com o estrito atendimento às expectativas normativas e com a prevenção das severas sanções legais é tamanha que, nesses casos, vem sendo procedida a rescisão unilateral e imediata do contrato (resilição), sem que sequer seja oportunizado à parte contratada o contraditório para tentativa de ajuste ou apresentação de esclarecimentos necessários para manutenção contratual, o que, salvo melhor juízo, afronta a ordem constitucional e acaba gerando ainda mais riscos para a empresa.
É simples: tratando-se de contratos privados, a opção pela resilição contratual – ou seja, pelo desfazimento unilateral de um contrato por simples manifestação de vontade – pode ensejar na frustração de expectativas válidas do contratado, especialmente em casos de patrimônio mobilizado no objeto do contrato e de grandes investimentos para atendimento das exigências contratuais; o que, segundo vasta jurisprudência dos Tribunais Superiores, caracteriza fato passível de indenização.
Nesse sentido, forçoso citar importante julgado da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que, em decisão da relatoria do Ministro Luís Felipe Salomão, determinou que instituições financeiras indenizassem uma empresa que, depois de fazer elevados investimentos, teve seu contrato prematuramente rompido. Veja-se:
RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. CLÁUSULA CONTRATUAL. RESILIÇÃO UNILATERAL. DENÚNCIA IMOTIVADA. VULTOSOS INVESTIMENTOS PARA REALIZAÇÃO A DA ATIVIDADE. DANO INJUSTO. BOA-FÉ OBJETIVA. FINS SOCIAL E ECONÔMICO. OFENSA AOS BONS COSTUMES. ART. 473, PARÁGRAFO ÚNICO DO CC/2002. PERDAS E DANOS DEVIDOS. LUCROS CESSANTES AFASTADOS. 1. É das mais importantes tendências da responsabilidade civil o deslocamento do fato ilícito, como ponto central, para cada vez mais se aproximar da reparação do dano injusto. Ainda que determinado ato tenha sido praticado no exercício de um direito reconhecido, haverá ilicitude se o fora em manifesto abuso, contrário à boa-fé, à finalidade social ou econômica do direito, ou, ainda, se praticado com ofensa aos bons costumes. [...] 3. Se, na análise do caso concreto, percebe-se a inexistência de qualquer conduta desabonadora de uma das partes, seja na conclusão ou na execução do contrato, somada à legítima impressão de que a avença perduraria por tempo razoável, a resilição unilateral imotivada deve ser considerada comportamento contraditório e antijurídico, que se agrava pela recusa na concessão de prazo razoável para a reestruturação econômica da contratada. 4. A existência de cláusula contratual que prevê a possibilidade de rescisão desmotivada por qualquer dos contratantes não é capaz, por si só, de afastar e justificar o ilícito de se rescindir unilateralmente e imotivadamente um contrato que esteja sendo cumprindo a contento, com resultados acima dos esperados, alcançados pela contratada, principalmente quando a parte que não deseja a resilição realizou consideráveis investimentos para executar suas obrigações contratuais. 5. Efetivamente, a possibilidade de denúncia "por qualquer das partes" gera uma falsa simetria entre os contratantes, um sinalagma cuja distribuição obrigacional é apenas aparente. Para se verificar a equidade derivada da cláusula, na verdade, devem ser investigadas as consequências da rescisão desmotivada do contrato, e, assim, descortina-se a falácia de se afirmar que a resilição unilateral era garantia recíproca na avença. 6. O mandamento constante no parágrafo único do art. 473 do diploma material civil brasileiro se legitima e se justifica no princípio do equilíbrio econômico. Com efeito, deve-se considerar que, muito embora a celebração de um contrato seja, em regra, livre, o distrato é um ônus, que pode, por vezes, configurar abuso de direito [...]”[3].
Ora, a questão é que, inclusive nos casos em que o contrato possua uma cláusula que autorize a rescisão injustificada por qualquer das partes, a resilição só pode ser realizada de forma responsável se houver avaliação dos investimentos promovidos por força do acordo e observar princípios da ordem constitucional, como a boa-fé e a finalidade social do contrato. Isso significa que uma decisão – coerente e realmente comprometida com integridade e redução de riscos – pelo rompimento contratual pressupõe, ao menos, fundamentação e convocação da parte contrária para exercício do seu contraditório.
Note-se que, até mesmo no âmbito dos contratos administrativos, só poderá haver rescisão contratual nas hipóteses legais e desde que respeitado o contraditório, na forma do art. 58 da Lei n. 8666/93, que estabelece hipóteses de modificação e rescisão unilateral, de forma sempre condicionada à legalidade e às garantias constitucionais (incisos I e II).
Portanto, apesar da preocupação do setor de compliance ser louvável, não é possível admitir uma decisão, especialmente advinda de um setor responsável pela integridade e redução de riscos da organização, que desrespeite garantias constitucionais, suprima o contraditório e deixe a organização sujeita a uma espécie de “riscos às avessas”.
Enfim, o tema é novo, instigante e muitas questões ainda precisam ser debatidas. Por outro lado, não é possível olvidar que decisões precipitadas jamais foram compatíveis com uma boa governança corporativa.
[1] GIOVANINI, Wagner. Compliance: a excelência na prática. São Paulo: 2017, p.463.
[2] MAFFEI, José Luiz. Curso de auditoria: introdução à auditoria de acordo com as normas internacionais e melhores práticas. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 70.
[3] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1555202/SP. Relator Ministro Luís Felipe Salomão. Publicada em 13 mar. 2017.
Como citar esse texto: ALBAN, Rafaela. Compliance, investigação e garantias constitucionais: limites para a atuação ostensiva do setor de compliance. Disponível em: <www.rafaelaalban.adv.br>. Publicado em: 20 dez. 2019.
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